sábado, 23 de janeiro de 2016


Obra milionária funcionou por um ano e está abandonada há uma década

Sistema de irrigação foi feito em Itaporã para bombear água de rio a 130 propriedades; prejuízo aos cofres públicos é de R$ 59 milhões

Helio de Freitas, enviado especial a Itaporã, e Aline Santos
Dutos que caíram durante cheia do rio. (Foto: Eliel Oliveira)
Dutos que caíram durante cheia do rio. (Foto: Eliel Oliveira)
Canos em meio à lavoura de soja. (Foto: Eliel Oliveira)Canos em meio à lavoura de soja. (Foto: Eliel Oliveira)
Uma mega e milionária estrutura abandonada no meio do mato. Canais de concreto tomados pela terra entre lavouras de soja. Casas de máquina habitadas por morcegos, dutos de aço despencando de pilares de cimento, reservatórios gigantescos que se transformaram em dor de cabeça para os donos das terras onde foram construídos e um caminhão de dinheiro público jogado fora.
A realidade do sistema de irrigação instalado no distrito de Santa Terezinha, um povoado de 800 habitantes, cercado por lavouras de soja, no município de Itaporã, a 227 km de Campo Grande, levou o Ministério da Integração Nacional a cobrar R$ 59,6 milhões do governo do Estado. A quantia corresponde ao valor atualizado do contrato 076/99, que nasceu em 26 de novembro de 1999 com montante de R$ 11,4 milhões.
Enquanto o dinheiro parece ter tomado rumo incerto no correr dos anos, o fracasso achou endereço no povoado, que sonhou em ser celeiro de produção frutífera de alta qualidade. Faz pelo menos uma década que o emaranhado de dutos e canais que cortam quilômetros e quilômetros de propriedades particulares está abandonado. Há dez anos nem uma gota de água do Rio Brilhante é captada pelo sistema. Tudo está lá, deixado ao relento, se deteriorando pelo tempo.
Nesta sexta-feira (22), o Campo Grande News esteve na Gleba Santa Terezinha e percorreu boa parte do sistema de irrigação que foi um fracasso total. Nada do esperado aconteceu. O sonho acalentado ainda na década de 90 virou pesadelo para alguns produtores e principalmente para o cofre público.
Pronto, mas inoperante - “O sistema todo foi concluído pelo governo, mas foi mal projetado, é muito caro, tinha muito desperdício de água. De cada cem litros captados no rio, 70 se perdiam até chegar ao destino final. O governo fez a parte dele, mas depois que estava tudo pronto abandonou e não tinha como os produtores assumirem os custos. Um ano depois de funcionamento, as máquinas pararam de bombear água porque a conta de energia era cara demais e não tinha quem pagasse. Aí parou tudo. Está assim até agora”.
Dutos de concreto que levavam água do rio para reservatório. (Foto: Eliel Oliveira)Dutos de concreto que levavam água do rio para reservatório. (Foto: Eliel Oliveira)
“Isso foi feito errado. Foi um erro. Não tinha como dar certo”, lamenta Ademir, conhecido como  Dico. (Foto: Eliel Oliveira)“Isso foi feito errado. Foi um erro. Não tinha como dar certo”, lamenta Ademir, conhecido como Dico. (Foto: Eliel Oliveira)
Sistema de bombeamento nunca usado no Santa Terezinha. (Foto: Eliel Oliveira)Sistema de bombeamento nunca usado no Santa Terezinha. (Foto: Eliel Oliveira)
O relato é Ademir Pereira de Freitas, o Dico, um dos 130 produtores de Santa Terezinha que deveriam ser beneficiados com o sistema de irrigação. Assim como ocorreu com os demais agricultores do local, o canal equipado com um moderno sistema de bombeamento chegou até a frente de sua propriedade, mas nunca foi usado por ele.
“Não utilizei nem uma gota da água que chegou aqui por um tempo. Precisava investir uns R$ 60 mil na época para distribuir a água na propriedade e como não tinha uma linha de crédito específica para isso, desisti da irrigação, abandonei o sonho de plantar fruta e continuei plantando soja”.
Presidente da associação de produtores do distrito, Dico acompanhou a reportagem do Campo Grande News nos locais onde o sistema de irrigação foi instalado. Ele conhece como ninguém a história do projeto e só lamenta pelo desperdício do dinheiro público. “Isso foi feito errado. Foi um erro. Não tinha como dar certo”.
Sonho de Derzi – Ademir Freitas contou que o sistema começou a ser instalado no fim do governo de Wilson Barbosa Martins (1995-1998), mas foi concluído no governo de Zeca do PT (1999-2006). Em menos de cinco anos, toda a gigantesca rede de dutos e demais estruturas estava pronta. “Dinheiro para a obra não faltou. O que faltou foi dinheiro para o produtor fazer o investimento necessário na propriedade e poder usar o sistema”.
Dico lembra que o então deputado federal Flávio Derzi (morto em agosto de 2001, vítima de câncer) pretendia apresentar um projeto de lei na Câmara para criar uma linha de crédito específica do Banco do Brasil para financiar a parte dos agricultores. “Mas ele faleceu e junto com ele morreu a ideia”.
Milhões abandonados – O sistema de irrigação de Santa Terezinha foi implantado por duas empreiteiras contratadas pelo governo de Mato Grosso do Sul. A estrutura inclui três estações de captação de água em três pontos diferentes do rio.
Canal que levava água para os sítios. (Foto: Eliel Oliveira)Canal que levava água para os sítios. (Foto: Eliel Oliveira)
Reservatório para 48 milhões litros de água. (Foto: Eliel Oliveira)Reservatório para 48 milhões litros de água. (Foto: Eliel Oliveira)
Uma delas deveria encher um reservatório de 48 milhões de litros, construído numa propriedade particular, assim como todo o sistema. As outras duas deveriam abastecer outros três reservatórios menores.
Até os reservatórios, a água era bombeada pelas máquinas instaladas nas estações de captação. Dos reservatórios, era distribuída “por gravidade” para os canais abertos – valas feitas de concreto equipadas com bombas menores e comportas, para controle do volume de água.
Os canais começam nos reservatórios e cortam todas as 130 propriedades. Em cada propriedade tem uma “casa de máquina”, construída em alvenaria, onde foi instalada uma bomba elétrica para mandar a água para o sítio.
“Até esse ponto o sistema foi feito, mas daqui para frente o custo teria que ser do produtor e poucos tinham condições de bancar do próprio bolso”, conta Ademir Freitas. Segundo ele, dos 130 produtores que deveriam ser atendidos, menos de dez implantaram os pivôs de irrigação nas terras para usar a água do sistema.
“Quando o governo tirou o time de campo e a água parou de chegar às propriedades, esses produtores ficaram com o prejuízo. Agora eles pensam em abrir poços artesianos e usar o sistema que já pagaram. Um já fez isso”, afirmou o produtor.
Do sonho ao pesadelo – A ideia de transformar Santa Terezinha em um grande produtor de frutas fracassou junto com o sistema de irrigação do governo, mas Cesar Janzeski pagou caro por isso.
Dono de um dos lotes em que os canais chegaram à porta de casa, Cesar usou as economias e o lucro da suinocultura que mantém em Santa Terezinha para implantar os pivôs de irrigação e começou a plantar goiaba.
Mas, a empolgação do descendente de poloneses nascido em 1960 no Rio Grande do Sul foi ainda mais longe. Acreditando que Santa Terezinha fosse se tornar um polo de produção de frutas, Cesar Janzeski decidiu instalar uma fábrica de polpas. Começou processando a produção própria e logo depois passou a comprar a goiaba produzida por um vizinho.
 
Canal deveria conduzir água até as propriedades. (Foto: Eliel Oliveira)Canal deveria conduzir água até as propriedades. (Foto: Eliel Oliveira)
Fábrica de polpas construídas no Santa Terezinha, (Foto: Eliel Oliveira)Fábrica de polpas construídas no Santa Terezinha, (Foto: Eliel Oliveira)
Foi aí que o sonho começou a se tornar pesadelo. Se não bastasse o sistema de irrigação abandonado pelo governo, Cesar Janzeski sentiu na pele o preço da burocracia para se abrir um negócio no Brasil e sofreu com a pressão da concorrência e da fiscalização do Ministério da Agricultura.
“Cheguei a jogar 130 toneladas de polpa aos porcos para não ter que pagar uma multa porque dois fiscais do Ministério da Agricultura fizeram exigências absurdas e me deram 30 dias para cumpri-las. Mas eu não desisti, fiz todas as modificações necessárias no prédio, investi em equipamento de alta qualidade e em fevereiro agora faz um ano que estou produzindo seis tipos de polpas. Ainda não estamos na capacidade total, começamos aos poucos, mas vamos crescer”, afirmou ele ao Campo Grande News na varanda de sua casa, ao lado da indústria, no núcleo urbano de Santa Terezinha.
Sem as frutas que deveriam ser produzidas no distrito, Cesar Janzeski busca os produtos em várias cidades brasileiras para processar em sua fábrica. Com um pequeno caminhão com câmara fria, ele viaja até Bento Gonçalves (RS) para buscar uva, vai ao Espírito Santo para comprar mamão, compra morango em Lages (SC) e acerola na região de Umuarama (PR).
Só a goiaba é produzida em seu sítio e na propriedade de outro morador do distrito e o maracujá vem de Ivinhema e Itaquiraí. “O resto eu compro em outros estados, vou lá pessoalmente selecionar as frutas e negociar preços”, conta Cesar.
“Com certeza se o projeto tivesse dado certo e mais agricultores daqui estivessem produzindo fruta, o custo de produção da polpa seria menor e haveria mais condições de disputar mercado”, afirma o produtor, que vende a polpa em feiras de Dourados e mercados de Itaporã, mas já negocia para exportar para outros estados.
 
No detalhe, dutos de concreto caídos. (Eliel Oliveira)No detalhe, dutos de concreto caídos. (Eliel Oliveira)
Apesar do investimento de R$ 1,8 milhão e muita dor de cabeça com a burocracia governamental, Cesar mantém a esperança e ainda acredita que Santa Terezinha possa se tornar grande produtor de frutas. “Eu vou construir um poço artesiano e usar o sistema que implantei. Outros podem fazer o mesmo”.
Já Ademir Freitas, o Dico, é mais realista: “Esse sistema fracassou. Talvez se todos os produtores tivessem feito os investimentos para usar a água e se o governo não tivesse nos abandonado, quem sabe poderia ter dado certo. Mas do jeito que está, não serve pra nada”.
Abandonado – Relatório de 2008, que integra o pedido de tomada de contas especial, já revelava o cenário de abandono. Na ocasião, visita técnica apontou que “'em resumo, toda a infraestrutura de irrigação do Projeto Santa Terezinha (…) está abandonada. Nas estações de bombeamento, estão sendo depredados e roubados os cabos elétricos de cobre, os medidores (hidrômetros), as caixas d'água para escora das bombas, os motores e as bombas. Os canais de adução e de distribuição, bem como os reservatórios, encontram-se com rachaduras decorrentes da falta de uso e de manutenção, o que tem favorecido o desenvolvimento da vegetação. (…)
Nas áreas ao redor das estações de bombeamento, o mato cresce há vários anos”.
Os recursos do convênio foram transferidos à Secretaria de Estado de Habitação e Infraestrutura do Governo do Estado do Mato Grosso do Sul para a “Complementação das obras de Infraestrutura de irrigação na gleba de Santa Terezinha”, no município de Itaporã.
À época, o valor total era de R$ 11.432.603,60, sendo R$ 1.039.327,60 de contrapartida da governo e R$ 10.393.276,00 do Ministério da Integração. A reportagem solicitou informação à assessoria de imprensa do governo, mas não obteve resposta.
Ressarcimento – A tomada de conta especial é um instrumento que os ministérios dispõem para ressarcir ao erário os recursos desviados – ou aplicados de forma não justificada – seja por pessoas físicas, entes governamentais ou entidades sem fins lucrativos.
As tomadas são instauradas pelos próprios gestores depois de esgotadas todas as medidas administrativas possíveis para regularização do dano. Em seguida, são encaminhadas à CGU (Controladoria-Geral da União), que irá se manifestar sobre a adequada apuração dos fatos, as normas eventualmente infringidas, a identificação do responsável e a precisa quantificação do prejuízo. Em alguns casos, os processos são devolvidos ao órgão de origem, para revisão ou complementação de dados.
 

terça-feira, 19 de janeiro de 2016

Ministro da Saúde leva coordenador repudiado por mais de 600 entidades a cidade berço da Reforma Psiquiátrica

publicado em 19 de janeiro de 2016 às 19:16
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Protesto de Profissionais de saúde, usuários e familiares contra Valencius Wurch na coordenação da Saúde Mental: Nessa segunda 18, na avenida Paulista
por Conceição Lemes
A cidade de Santos, no litoral paulista, é emblemática na luta e adoção de políticas públicas de saúde inovadoras.
Muitas iniciativas atualmente consagradas nasceram lá sob a coordenação ou inspiração do médico sanitarista David Capistrano Filho (1948-2000), um dos protagonistas do Sistema Único de Saúde (SUS), da saúde coletiva e da reforma sanitária brasileira. Um verdadeiro guerreiro da saúde pública.
Davizinho, como era chamado, foi seu secretário municipal de Saúde (1989-1992) e seu prefeito (1993-1996).
Santos foi o primeiro município do Brasil e a primeira cidade do mundo a garantir acesso gratuito e universal do coquetel antirretroviral a pacientes com HIV/Aids.
Santos foi o primeiro município brasileiro a distribuir seringas e agulhas descartáveis para usuários de drogas injetáveis, visando à redução de danos.
Santos foi o primeiro município brasileiro a fazer intervenção num hospital psiquiátrico privado, a Casa de Saúde Anchieta, onde ocorreram mortes violentas.
A instituição tinha cerca de 430 leitos e 550 pessoas internadas. Isso aconteceu em 3 de maio de 1989, dois anos antes da lei da Reforma Psiquiátrica.
São muitas as crias de Davizinho e dessa época histórica de Santos pelo Brasil afora.
Por exemplo, o médico sanitarista e professor da Unifesp, Arthur Chioro, ex-ministro da Saúde do governo da presidenta Dilma. Ele foi coordenador de Especialidades, quando David era secretário da Saúde.
O médico psiquiatra Roberto Tykanori, coordenador-geral de Saúde Mental, Álcool e Outras Drogas até 14 de dezembro do ano passado. Ele foi  interventor na Casa de Saúde Anchieta de 1989 a 1996. Durante um período acumulou o cargo de coordenador de Saúde Mental de Santos.
Na última sexta-feira 15, o ministro Marcelo Castro foi a Santos participar da inauguração da Unidade de Pronto Atendimento (UPA) Central de Santos. Em outubro de 2015, no auge da crise do governo Dilma, Castro substituiu Chioro, do PT histórico, na pasta. O Ministério da Saúde foi moeda de troca no balcão de negociação com o PMDB. Castro é médico psiquiatra e deputado federal pelo PMDB do Piauí.
Apesar da substituição absurda, a vida  segue.
A questão é o detalhe. Castro levou na bagagem o psiquiatra Valencius Wurch Duarte Filho, novo coordenador-geral de Saúde Mental, Álcool e Outras Drogas.
De 1993 a 1998, relembramos, Valencius, na condição de diretor-clínico da Casa de Saúde Dr. Eiras, em Paracambi, na Grande Rio de Janeiro, ajudou a escrever páginas tenebrosas do maior hospício privado da América Latina. Aí, centenas de usuários foram maltratados por anos, alguns até a morte, geralmente por fome, violência física, eletrochoques sistemáticos, doenças de fácil controle e curáveis. Uma autêntica casa de horrores.
A rejeição ao nome de Valencius na condução da Política Nacional de Saúde Mental é quase unânime.
Em protesto à sua nomeação, há 35 dias (desde 15 de dezembro de 2015), a sala da coordenação da Saúde Mental no Ministério da Saúde está ocupada por profissionais, usuários e familiares.
Na quinta-feira passada, aconteceu o LoUcupa Brasília. Caravanas de vários estados desembarcaram na capital federal para protestar contra o novo coordenador.
Mesmo com tudo isso contra, Marcelo Castro levou Valencius junto. Inclusive fez questão de citá-lo no discurso.
Das duas, uma: ou o ministro é desprovido de sensibilidade intelectual e histórica ou quis fazer provocação. Esta repórter considera mais plausível a segunda possibilidade.
Ir à cidade de Chioro e Tykanori, que também é um dos berços da Reforma Psiquiátrica no Brasil, é provocação grosseira, mesquinha, inconcebível para um ministro de Estado.
Provocação, diga-se de passagem, não apenas a Chioro e Tykanori, mas a todos que batalharam pela criação do SUS, pelas reformas sanitária e psiquiátrica, inclusive à memória de David Capistrano Filho.
Afinal,como registrou reportagem do New York Times de 31 de dezembro de 2015: “Interrompeu a prática da Medicina anos atrás [desde a década de 1980] para se dedicar aos seus próprios interesses comerciais e à política”
Lamentavelmente um gesto que revela a estatura de Marcelo Castro como ministro de Saúde. Certamente muito aquém do esperado para o cargo.
A propósito. Como tem acontecido em todos os eventos a que tem comparecido, o ministro Marcelo Castro foi recebido com protestos na entrada da UPA Central de Santos.
Depois, lá dentro, depois, um médico entregou-lhe o manifesto do Fórum em Defesa da Reforma e da Luta Antimanicomial da Baixada Santista (na íntegra, abaixo) contra Valencius, com um alerta: “A saúde mental do nosso país não está grávida, mas corre sério risco de ficar com microcefalia”.
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Para desconforto do ministro, tudo indica que o movimento contra Valencius Wurch não vai parar tão cedo.
Nesta segunda-feira 18, foi a vez de profissionais de saúde, acadêmicos, usuários e familiares fazerem passeata na Avenida Paulista.


http://www.viomundo.com.br/denuncias/ministro-da-saude-leva-coordenador-repudiado-por-mais-de-600-entidades-a-cidade-berco-da-reforma-psiquiatrica.html

quarta-feira, 13 de janeiro de 2016

No Choque e Espanto de 12 de janeiro, PM de Alckmin promoveu emboscada, arrancou camiseta do PSOL e quebrou os dentes de manifestante; veja as imagens

publicado em 13 de janeiro de 2016 às 16:36
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Depoimento de Raul Santiago, militante do PSOL que a PM obrigou a tirar a camisa do partido
da página do PSOL
Raul Santiago Rosa é militante do PSOL em São Paulo. Durante o ato desta terça-feira (12) contra o aumento das tarifas de transporte público, foi duramente reprimido pela Polícia Militar e, em meio a diversas ameaças, recebeu uma ordem de policiais para tirar a camisa que vestia, não por acaso com os símbolos do partido, que ficou como demonstra a foto. Leia abaixo o seu depoimento:
“Estava na concentração 40 minutos antes do ato ‘começar’. Mal os manifestantes se posicionaram para marchar já iniciou o bombardeio. A polícia estava visivelmente bem organizada, armada e fardada, e todas as vias foram fechadas de modo a nos encurralar.
Eu já estive em várias manifestações com repressão, mas nunca vi essa quantidade de bombas ser jogada no meio da multidão. Várias pessoas se machucaram muito seriamente.
Estava com minha namorada, que estava ajudando uma outra garota, e neste momento estávamos com as mãos para o alto quando jogaram uma bomba de estilhaço entre eu e ela. Ambos fomos atingidos, eu um pouco mais gravemente pois os estilhaços se espalharam pela perna, costas e braço. Neste momento nos perdemos.
Demorei um tempo até conseguir falar com ela, e quando consegui imediatamente fui encontrá-la. Então, quando estava no último quarteirão da Rua Haddock Lobo em direção à Av. Paulista, fui abordado por 5 policiais da PM.
O motorista tirou a arma de fogo letal de dentro do carro para me fazer parar. Joguei minha mala no chão e eles mandaram eu abrir as pernas e colocar a mão na cabeça de costas. Neste momento eles gritaram:
— Sua mala está pesada né? Tem explosivo aí? – Fiquei com muito medo de eles implantarem algo. — Você tem passagem na delegacia? O que faz da vida?
Eu respondi que não tinha, que era estudante e trabalhador de carteira assinada, que estava lá porque era contra o aumento.
– Repete para mim: você tem sorte de estar vivo – repeti – é a primeira vez que te vejo aqui, se eu te ver de novo em manifestaçãozinha de esquerda vou quebrar seus dentes e você vai cuspir um a um.
Estava com muito medo, mas tentei olhar as identificações dele. Eles não deixavam.
— Olho nos meus olhos seu vagabundo, vou dar um tapa nessa orelha com brinco até rasgar ele fora.
Depois disso eles tiraram dezenas de fotos minhas, do meu rosto com RG etc.
— Você tá no meu “book” agora, se eu te pegar de novo vou te estraçalhar.
Eles revistaram minha mala inteira, ficaram me aterrorizando. Depois que terminou eu segurava minha camiseta para cima pois ela encostava no machucado do estilhaço da bala e ardia muito.
– Tomou bala é? Isso é menos do que você merece, eu tô com vontade de te encher de porrada aqui. Tira essa camiseta do partido e põe na mala que cê tá liberado, cê entendeu?
Foi horrível, mas eu tive de tirar a camiseta que expressa minha posição política e colocar dentro da mala como se eu tivesse vergonha dela. Eu tinha outra camisa que ele me obrigou a vestir e fui embora.
Visivelmente essa equipe da PM estava destacada para ‘apavorar’ a juventude, desestimulando todo mundo a ir nas manifestações. Mas isso nos fortalece, sabemos que lutar por direitos não é crime, portanto não devemos nos intimidar. Além disso é um absurdo a repressão ideológica que sofri, mostrando o retrocesso que é essa polícia militarizada.
Estou feliz de saber que estou fazendo o certo. Se meu partido é inimigo de quem aumenta a passagem, fecha escolas, precariza a saúde e bate em trabalhadores e estudante, tenho orgulho de vestir a camisa do PSOL e tomar quantas bombas forem necessárias para deixar clara a minha posição de que sou contra a política do governo do estado e da prefeitura.”
PS do Viomundo: O Estadão contou uma bomba a cada sete segundos por um período de 6 minutos. Um verdadeiro Choque e Espanto.
*****
NOTA DO MOVIMENTO PASSE LIVRE SOBRE A REPRESSÃO POLICIAL NO ATO DO DIA 12
Em 2013,a população mobilizada barrou o aumento da tarifa. De lá para cá, ao invés de respeitar a conquista histórica do povo, a Prefeitura e Governo do Estado aumentaram em 80 centavos a tarifa, 26% em relação aos R$3,00! Pelo segundo ano seguido o governador Geraldo Alckmin e o prefeito Fernando Haddad deram as mãos e aumentaram juntos as passagens de trens, metrôs, ônibus urbanos e interurbanos.
Esse aumento absurdo, prejudica principalmente a população mais pobre. Estudos do IPEA sugerem que mais de 400 mil pessoas podem ser excluídas do transporte público só na cidade de São Paulo por não poder pagar a tarifa. Esse aumento só interessa aos empresários do transporte, que mantém seus lucros milionários. O valor da tarifa, assim como sua própria existência, é uma decisão política, que nada tem haver com a inflação.
É a decisão de fazer a população arcar com a farra dos ricos pagando não só com a delapidação dos seus salários, mas também com seu sofrimento cotidiano nos ônibus e trens lotados! Não aguentamos mais!
O direito à cidade é a pauta básica do MPL. Ontem vimos que ainda há muito pelo que lutar. A cidade esteve sitiada pela polícia militar numa verdadeira operação de guerra contra a população, que se reunia para lutar contra mais um aumento de tarifa.
As barreiras policiais são mais uma das inúmeras catracas que enfrentamos todos os dias. Elas impediam que a população participasse da manifestação, revistando e prendendo pessoas que tentavam passar pelo bloqueio policial para chegar até o ato. Foi instalado um clima de terror impedindo nosso direito democrático de manifestação. A tática orquestrada pela Polícia era obrigar a manifestação a descer pela Consolação, onde tinha sido armada um verdadeiro matadouro, com policias da tropa de choque espalhadas ao longo do percurso.
Ao denunciarmos esta situação, e insistir em nosso trajeto original, o ato foi reprimido antes mesmo que ele começasse, situação que nunca ocorreu em um ato organizado pelo MPL. A PM cercou o ato completamente, nos impediu de seguir nosso trajeto, quis impor um trajeto que levava a manifestação para a praça de guerra montada no centro da cidade, e quando o ato tentou sair, sem descumprir nada do que havia sido informado ao Comando da Polícia, massacrou os manifestantes com bombas de estilhaço, de gás lacimogênio, balas de borrachas, spray de pimenta e porrada.
A PM continuou perseguindo os manifestantes após a implosão do ato, deixando dezenas de feridos, com fraturas expostas pelos estilhaços de bombas, atropelando manifestantes com motos, novamente atirando com bala de borracha nos olhos das pessoas.
Além dos vários detidos durante o ato na manobra conhecida como Calderão de Hamburgo, proibida em diversos países, a PM encaminhou 16 detidos as Delegacias, e 2 seguiram presos: um adolescente espera decisão da Vara da Infância para ser liberado ou encaminhado à Fundação Casa, e um maior de idade que acaba de ser liberado na audiência de custódia.
As cenas de terror que vivenciamos não foram despreparo da Polícia: são parte de uma estratégia de endurecimento da repressão. O Secretário de Segurança Pública, Alexandre de Moraes, defendeu a ação e fez uma estranha coletiva às 21h, quando a população que resistia ainda era reprimida no centro, defendendo que os movimentos sociais não tem direito de decidir o trajeto de seus atos. E a repressão que assistimos ontem não foi isolada.
A SSP mostrou que está disposta a trabalhar na ilegalidade para combater os protestos e defender as catracas: na segunda-feira, a Polícia Militar fez uma ofensiva contra os manifestantes, divulgando em tom de ameaça uma série de imagens de pessoas que teriam agredido um policial militar infiltrado durante protesto após terem presenciado o mesmo policial à paisana dando golpes em um manifestante.
Após a divulgação dessas imagens, SEM NENHUM MANDADO DE PRISÃO, a Polícia Militar foi na casa de duas pessoas que dizem que nem sequer participavam da manifestação, e supostamente teriam sido identificadas nessas imagens, e de forma absolutamente ilegal as levou presas para o 3o DP. A partir daí uma série de coações e ilegalidades se seguiram, diferentemente da versão apresentada pela polícia militar, eles foram obrigados a ir para a delegacia.
Como comprova o boletim de ocorrência, a chegada ao DP ocorreu as 20:13. Na delegacia, uma série de abusos ocorreu, a começar pelo fato de que as pessoas estavam detidas ilegalmente sem ordem judicial, e sem que aquilo configurasse um flagrante. No 3o DP, argumentou-se que essas prisões estariam dentro de um boletim de ocorrência por roubo registrado no 2o DP na sexta-feira, dia 08/01, mais de 72 horas antes.
Para buscar legitimar essa atuação absolutamente ilegal da polícia militar, o delegado da polícia civil conseguiu um mandado judicial decretando a prisão temporária dessas três pessoas em plena madrugada, que foi emitido às 01:48, ou seja, muito depois da PM ter prendido as pessoas em suas próprias casas.
Os dois seguem presos temporariamente, tendo sido a prisão decretada por um prazo de 5 dias. Além disso, outra pessoa foi presa em flagrante na sexta-feira, também no 2o DP, acusada de roubo da mochila do policial infiltrado. Ao todo, nesse momento, ao menos 5 pessoas seguem presas em virtude das manifestações contra o aumento da passagem.
Ao invés de discutir o transporte, o governo mostra que o único diálogo é a repressão. E a única prioridade também: os tanques blindados para conter as manifestações custaram R$30 milhões de dinheiro público, e cada uma das centenas de bombas lançadas contra a população chega a custar R$800. A munição que nos ataca é tarifa zero, bancada pelos impostos, mas a tarifa do transporte não! Não vamos nos intimidar! Resistiremos até o fim de todas as catracas!
R$3,80 NUNCA!
Movimento Passe Livre – São Paulo

segunda-feira, 4 de janeiro de 2016

Política

Entrevista - Jessé de Souza

"A herança dos últimos 15 anos foi a ascensão dos excluídos"

Presidente do Ipea critica os vícios do pensamento brasileiro
por Miguel Martins publicado 01/01/2016 04h05, última modificação 01/01/2016 08h02
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Marcelo Carnaval/Ag. O Globo
Jesse-de-Souza
De Gilberto Freyre a Sérgio Buarque de Holanda, ninguém escapa
Atual presidente do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), o sociólogo Jessé de Souza é conhecido pelo pensamento agudo e a argumentação desassombrada. Seu novo livro, A Tolice da Inteligência Brasileira, confirma essas características. Ao analisar o desenvolvimento do pensamento no e sobre o País, Souza não poupa ninguém, nem mesmo Gilberto Freyre e Sérgio Buarque de Holanda. Segundo ele, o pensamento culturalista brasileiro tornou-se um instrumento das elites para influenciar a classe média na demonização das instituições e da classe política, o que esconderia a verdadeira intenção da parcela mais rica do País: apropriar-se novamente do Estado brasileiro. 
Na entrevista a seguir, Souza também critica o conceito de nova classe média criado por seu antecessor no Ipea, Marcelo Neri. Os setores médios tradicionais, argumenta, possuem privilégios não materiais inacessíveis aos novos trabalhadores. Essa classe média tradicional, acrescenta, é um dos três pilares da atual “gramática do golpe”. Os outros dois são a mídia e a Justiça, que substituiu as Forças Armadas nesta aliança.
CartaCapital: No livro A Tolice da Inteligência Brasileira, o senhor critica a perenidade dos mitos nacionais. A busca dessa identidade teria reforçado preconceitos sobre o brasileiro ser corrupto, levar tudo “no jeitinho”, ser hospitaleiro e amável, entre outros estereótipos. Neste ano de recrudescimento conservador no País, os mitos estão mais fortes?
Jessé de Souza: Os jornalistas, os professores e os livros no Brasil ainda recorrem a intelectuais que moldaram nossa interpretação em torno dessas questões. São ideias equivocadas, não valem um vintém do ponto de vista científico, mas convencem e mandam no País. Sempre que um governo popular chegou ao poder, as elites recuperaram o pensamento culturalista formulado desde 1933.
CC: O ano do lançamento de Casa-Grande e Senzala.
JS: Exato. A genialidade de Gilberto Freyre foi interpretar o País em uma comparação com os Estados Unidos, o grande outro do Brasil. Ele valorizou o encontro de raças e o classificou como um encontro de culturas. Como sempre perdíamos na comparação com os norte-americanos, era preciso criar um mito positivo, algo que a população pudesse aceitar e incorporar. Formulou-se então um mito que valoriza nosso corpo, sentimento e sexualidade. Embora absurdo, tendemos a aceitar que os norte-americanos e os europeus representam o espírito, a racionalidade, são mais produtivos e confiáveis, não são corruptos. Em Freyre, isso ainda é ambíguo.
Quando Sergio Buarque de Holanda reproduz esse mito no homem cordial, acaba por absorver apenas a parte negativa do antecessor, ao opor o homem cordial brasileiro ao homem racional norte-americano. Para pintar o Brasil como o país do atraso, os conflitos reais têm sido postos na sombra em nome de uma disputa entre Estado e mercado que passa a ser incensada. Não existe esse conflito. Cria-se esse falso certame para silenciar a luta de classes, na qual quem monopoliza o conhecimento e domina o capital cultural são as elites e a classe média.
CC: Embora não se veja dessa forma, a classe média brasileira é privilegiada?
JS:  Sem dúvida. Apesar de não ter acesso ao capital econômico do 1% mais rico, a classe média tem uma herança invisível, como estímulos emocionais e a capacidade de concentração, algo que os pobres não têm. Muitos entram na escola como potenciais analfabetos funcionais, antes mesmo de sua trajetória escolar. O liberalismo defende que a escola pode resolver os problemas sociais. A questão não é, porém, apenas a qualidade do ensino, mas toda uma construção emocional, sentimental, de estar aberto ou não ao pensamento abstrato, ao cálculo, ao pensamento prospectivo. Nada disso é natural, é um privilégio. A classe média tem tempo para planejar sua carreira ao longo da vida. Por batalharem demais no presente, os trabalhadores precarizados não têm essa perspectiva. 

Golpismo
A dita classe média se une à mídia e à Justiça, substituta dos militares/ Créditos: Paulo Pinto/Fotos Públicas
CC: Há uma crítica no livro à prevalência do economicismo nas análises de Marcio Pochmann e Marcelo Neri, seus antecessores no Ipea, sobre a ascensão social dos últimos anos. Esse foco excessivo na criação de empregos e na distribuição de bens materiais tem pago um preço neste momento de crise econômica?
JS: Esse é o ponto principal. Até 2010, só se falava em nova classe média. Passei a defender então o conceito de nova classe trabalhadora precarizada. Os trabalhadores tradicionais têm diminuído, enquanto o capitalismo financeiro ergue uma classe trabalhadora para suas próprias necessidades, não somente no Brasil, mas na China, na Rússia, em todos os locais onde há quem se disponha a fazer de tudo por muito pouco. E são esses precarizados que cresceram entre nós.
Os governos petistas não fomentaram a formação de uma nova classe média. Os batalhadores continuam sem qualquer privilégio de nascimento. A grande herança desses últimos 15 anos foi a manutenção desse processo de ascensão dos excluídos para uma classe trabalhadora, mesmo precarizada. Há inclusão no mercado, emprego formal e a possibilidade de investimento em educação para os filhos dos batalhadores. É preciso mudanças consequentes para se formar uma classe trabalhadora qualificada com alta produtividade, o grande desafio para o Brasil deixar de ser um exportador de matéria-prima. 
CC: Muitos dos novos trabalhadores têm ficado alheios à atuação sindical, e explicam sua ascensão social mais por méritos próprios ou pela intervenção divina do que pelo sucesso de políticas públicas. Isso fragiliza a base de apoio a um governo popular?
JS: Se a esquerda não construir uma alternativa, a única narrativa válida para os batalhadores será o pentecostalismo, que atrela em grande medida essa classe aos interesses de mercado. Isso não é, contudo, chapado. No Nordeste, essa classe percebe a relação da ascensão com os programas sociais, até porque lá a miséria anterior era muito maior. Sabem que devem a Lula. No Sudeste, a visão de que Deus ou o mérito pessoal foram mais relevantes é mais forte. Têm uma visão egoísta de mundo, atrelada a interesses de mercado. Essa própria classe não percebe quem são seus aliados políticos. O que mostra a pobreza de narrativa da própria esquerda. 
CC: Sobre as manifestações de junho de 2013, seu livro afirma que o dia 19 foi a grande virada, com a formação de um novo pacto conservador. Como o senhor interpreta a atual crise política em face desse pacto?
JS: Existe uma estrutura, uma gramática do golpe no Brasil. Ele mudou, modernizou-se, mas mantém a mesma estrutura. O golpe precisa do “bumbo” tocado pela imprensa conservadora, do suporte da classe média e de um elemento constitucional para dar a aparência de legalidade à captura da soberania popular. Nos governos democráticos de Getúlio Vargas e João Goulart, esse elemento eram os militares, pois a Constituição previa a intervenção das Forças Armadas em caso de desordem. Essa gramática modernizou-se: não está ancorada mais na botina do general, mas na toga da lei. O elemento constitucional atual são as agências de controle, a Polícia Federal, os juízes justiceiros, postos para além do bem e do mal. 
CC: Vivemos um momento crucial?
JS: É uma esquina da nossa história. Ou aprofundamos o que conquistamos nos últimos 15 anos, um processo abortado há 60 anos, ou voltamos a um Brasil governado para 20%, aquele erguido pelo golpe de 1964. 
*Entrevista publicada originalmente na edição 876 de CartaCapital, com o título "O demolidor"
 

O corpo utópico. Texto inédito de Michel Foucault

Nesta conferência de Michel Foucault – que acaba de ser publicada em espanhol – o corpo é, em primeiro lugar, “o contrário de uma utopia”, lugar “absoluto”, “desapiedado”, com o qual a utopia da alma se confronta. Mas, finalmente, o corpo, “visível e invisível”, “penetrável e opaco”, é “o ator principal de toda utopia” e cala apenas diante do espelho, do cadáver ou do amor.

A conferência “O corpo utópico”, de 1966, integra o livro El cuerpo utópico. Las heterotopías, cuja versão espanhola acaba de ser publicada (Ed. Nueva Vision). Esta versão está publicada no jornal argentino Página/12, 29-10-2010. A tradução é do Cepat.

Eis a conferência.

 

Basta eu acordar, que não posso escapar deste lugar que Proust [A recuperação do corpo no processo do acordar é um tema recorrente na obra de Marcel Proust – Nota da Redação], docemente, ansiosamente, ocupa uma vez mais em cada despertar. Não que me prenda ao lugar – porque depois de tudo eu posso não apenas mexer, andar por aí, mas posso movimentá-lo, removê-lo, mudá-lo de lugar –, mas somente por isso: não posso me deslocar sem ele. Não posso deixá-lo onde está para ir a outro lugar. Posso ir até o fim do mundo, posso me esconder, de manhã, debaixo das cobertas, encolher o máximo possível, posso deixar-me queimar ao sol na praia, mas o corpo sempre estará onde eu estou. Ele está aqui, irreparavelmente, nunca em outro lugar. Meu corpo é o contrário de uma utopia, é o que nunca está sob outro céu, é o lugar absoluto, o pequeno fragmento de espaço com o qual, em sentido estrito, eu me corporizo.

Meu corpo, topia desapiedada. E se, por ventura, eu vivesse com ele em uma espécie de familiaridade gastada, como com uma sombra, como com essas coisas de todos os dias que finalmente deixei de ver e que a vida passou para segundo plano, como essas chaminés, esses telhados que se amontoam cada tarde diante da minha janela? Mas, todas as manhãs, a mesma ferida; sob os meus olhos se desenha a inevitável imagem que o espelho impõe: rosto magro, costas curvadas, olhos míopes, careca, nada lindo, na verdade. Meu corpo é uma jaula desagradável, na qual terei que me mostrar e passear. É através de suas grades que eu vou falar, olhar, ser visto. Meu corpo é o lugar irremediável a que estou condenado.

Depois de tudo, creio que é contra ele e como que para apagá-lo, que nasceram todas as utopias. A que se devem o prestígio da utopia, da beleza, da maravilha da utopia? A utopia é um lugar fora de todos os lugares, mas é um lugar onde terei um corpo sem corpo, um corpo que será belo, límpido, transparente, luminoso, veloz, colossal em sua potência, infinito em sua duração, desligado, invisível, protegido, sempre transfigurado; e é bem possível que a utopia primeira, aquela que é a mais inextirpável no coração dos homens, seja precisamente a utopia de um corpo incorpóreo. O país das fadas, dos duendes, dos gênios, dos magos, e bem, é o país onde os corpos se transportam à velocidade da luz, onde as feridas se curam imediatamente, onde caímos de uma montanha sem nos machucar, onde se é visível quando se quer e invisível quando se deseja. Se há um país mágico é realmente para que nele eu seja um príncipe encantado e todos os lindos peraltas se tornem peludos e feios como ursos.

Mas há ainda outra utopia dedicada a desfazer os corpos. Essa utopia é o país dos mortos, são as grandes cidades utópicas deixadas pela civilização egípcia. Mas, o que são as múmias?  São a utopia do corpo negado e transfigurado. As múmias são o grande corpo utópico que persiste através do tempo. Há as pinturas e esculturas dos túmulos; as estátuas, que, desde a Idade Média, prolongam uma juventude que não terá fim. Atualmente, existem esses simples cubos de mármore, corpos geometrizados pela pedra, figuras regulares e brancas sobre o grande quadro negro dos cemitérios. E nessa cidade de utopia dos mortos, eis aqui que meu corpo se torna sólido como uma coisa, eterno como um deus.

Mas, talvez, a mais obstinada, a mais poderosa dessas utopias através das quais apagamos a triste topologia do corpo nos seja administrada pelo grande mito da alma, fornecido desde o fundo da história ocidental. A alma funciona maravilhosamente dentro do meu corpo. Nele se aloja, evidentemente, mas sabe escapar dele: escapa para ver as coisas, através das janelas dos meus olhos, escapa para sonhar quando durmo, para sobreviver quando morro. A minha alma é bela, pura, branca. E se meu corpo barroso – em todo o caso não muito limpo – vem a se sujar, é certo que haverá uma virtude, um poder, mil gestos sagrados que a restabelecerão em sua pureza primeira. A minha alma durará muito tempo, e mais que muito tempo, quando o meu velho corpo apodrecer. Viva a minha alma!  É o meu corpo luminoso, purificado, virtuoso, ágil, móvel, tíbio, fresco; é o meu corpo liso, castrado, arredondado como uma bolha de sabão.

E eis que o meu corpo, pela virtude de todas essas utopias, desapareceu. Desapareceu como a chama de uma vela que alguém sopra. A alma, as tumbas, os gênios e as fadas se apropriaram pela força dele, o fizeram desaparecer em um piscar de olhos, sopraram sobre seu peso, sobre sua feiúra, e me restituíram um corpo fulgurante e perpétuo.

Mas meu corpo, para dizer a verdade, não se deixa submeter com tanta facilidade. Depois de tudo, ele mesmo tem seus recursos próprios e fantásticos. Também ele possui lugares sem-lugar e lugares mais profundos, mais obstinados ainda que a alma, que a tumba, que o encanto dos magos. Tem suas bodegas e seus celeiros, seus lugares obscuros e praias luminosas. Minha cabeça, por exemplo, é uma estranha caverna aberta ao mundo exterior através de duas janelas, de duas aberturas – estou seguro disso, posto que as vejo no espelho. E, além disso, posso fechar um e outro separadamente. E, no entanto, não há mais que uma só dessas aberturas, porque diante de mim não vejo mais que uma única paisagem, contínua, sem tabiques nem cortes. E nessa cabeça, como acontecem as coisas? E, se as coisas entram na minha cabeça – e disso estou muito seguro, de que as coisas entram na minha cabeça quando olho, porque o sol, quando é muito forte e me deslumbra, vai a desgarrar até o fundo do meu cérebro –, e, no entanto, essas coisas ficam fora dela, posto que as vejo diante de mim e, para alcançá-las, devo me adiantar.

Corpo incompreensível, penetrável e opaco, aberto e fechado: corpo utópico. Corpo absolutamente visível – porque sei muito bem o que é ser visto por alguém de alto a baixo, sei o que é ser espiado por trás, vigiado por cima do ombro, surpreendido quando menos espero, sei o que é estar nu. Entretanto, esse mesmo corpo é também tomado por uma certa invisibilidade da qual jamais posso separá-lo. A minha nuca, por exemplo, posso tocá-la, mas jamais vê-la; as costas, que posso ver apenas no espelho; e o que é esse ombro, cujos movimentos e posições conheço com precisão, mas que jamais poderei ver sem retorcer-me espantosamente. O corpo, fantasma que não aparece senão na miragem de um espelho e, mesmo assim, de maneira fragmentada. Necessito realmente dos gênios e das fadas, e da morte e da alma, para ser ao mesmo tempo indissociavelmente visível e invisível? E, além disso, esse corpo é ligeiro, transparente, imponderável; não é uma coisa: anda, mexe, vive, deseja, se deixa atravessar sem resistências por todas as minhas intenções. Sim. Mas até o dia em que fico doente, sinto dor de estômago e febre. Até o dia em que estala no fundo da minha boca a dor de dentes. Então, então deixo de ser ligeiro, imponderável, etc.: me torno coisa, arquitetura fantástica e arruinada.

Não, realmente, não se necessita de magia, não se necessita de uma alma nem de uma morte para que eu seja ao mesmo tempo opaco e transparente, visível e invisível, vida e coisa. Para que eu seja utopia, basta que seja um corpo. Todas essas utopias pelas quais esquivava o meu corpo, simplesmente tinham seu modelo e seu ponto primeiro de aplicação, tinham seu lugar de origem em meu corpo. Estava muito equivocado há pouco ao dizer que as utopias estavam voltadas contra o corpo e destinadas a apagá-lo: elas nasceram do próprio corpo e depois, talvez, se voltarão contra ele.

Uma coisa, entretanto, é certa: o corpo humano é o ator principal de todas as utopias. Depois de tudo, uma das utopias mais velhas que os homens contaram a si mesmos, não é o sonho de corpos imensos, sem medidas, que devorariam o espaço e dominariam o mundo? É a velha utopia dos gigantes, que se encontra no coração de tantas lendas, na Europa, na África, na Oceania, na Ásia. Essa velha lenda que durante tanto tempo alimentou a imaginação ocidental, de Prometeu a Gulliver.

O corpo é também um grande ator utópico quando se pensa nas máscaras, na maquiagem e na tatuagem. Usar máscaras, maquiar-se, tatuar-se, não é exatamente, como se poderia imaginar, adquirir outro corpo, simplesmente um pouco mais belo, melhor decorado, mais facilmente reconhecível. Tatuar-se, maquiar-se, usar máscaras, é, sem dúvida, algo muito diferente; é fazer entrar o corpo em comunicação com poderes secretos e forças invisíveis. A máscara, o sinal tatuado, o enfeite colocado no corpo é toda uma linguagem: uma linguagem enigmática, cifrada, secreta, sagrada, que se deposita sobre esse mesmo corpo, chamando sobre ele a força de um deus, o poder surdo do sagrado ou a vivacidade do desejo. A máscara, a tatuagem, o enfeite coloca o corpo em outro espaço, o fazem entrar em um lugar que não tem lugar diretamente no mundo, fazem desse corpo um fragmento de um espaço imaginário, que entra em comunicação com o universo das divindades ou com o universo do outro. Alguém será possuído pelos deuses ou pela pessoa que acaba de seduzir. Em todo o caso, a máscara, a tatuagem, o enfeite são operações pelas quais o corpo é arrancado do seu espaço próprio e projetado a outro espaço.

Escutem, por exemplo, este conto japonês e a maneira como um tatuador faz passar a um universo que não é o nosso o corpo da jovem que ele deseja:

O sol lançava seus raios sobre o rio e incendiava o quarto das sete esteiras. Seus raios refletidos sobre a superfície da água formavam um desenho de ondas douradas sobre o papel dos biombos e sobre o rosto da jovem em sono profundo. Seikichi, depois de ter corrido os tabiques, tomou entre as suas mãos suas ferramentas de tatuagem. Durante alguns instantes permaneceu imerso numa espécie de êxtase. Precisamente agora saboreava plenamente a estranha beleza da jovem. Parecia-lhe que podia permanecer sentado diante desse rosto imóvel durante dezenas ou centenas de anos sem jamais experimentar nem cansaço nem aborrecimento. Assim como o povo de Mênfis embelezava outrora a terra magnífica do Egito de pirâmides e de esfinges, assim Seikichi, com todo o seu amor, quis embelezar com seu desenho a pele fresca da jovem. Aplicou-lhe de imediato a ponta de seus pincéis de cor segurando-os entre o polegar, e os dedos anular e pequeno da mão esquerda, e à medida que as linhas eram desenhadas, picava-as com sua agulha que segurava na mão direita.

E quando se pensa que as vestimentas sagradas ou profanas, religiosas ou civis fazem o indivíduo entrar no espaço fechado do religioso ou na rede invisível da sociedade, então se vê que tudo quanto toca o corpo – desenhos, cores, diademas, tiaras, vestimentas, uniformes – faz alcançar seu pleno desenvolvimento, sob uma forma sensível e abigarrada, as utopias seladas no corpo.

Mas, se fosse preciso descer mais uma vez abaixo das vestimentas, se fosse preciso alcançar a própria carne, e então se veria que em alguns casos, em seu ponto limite, é o próprio corpo que volta contra si seu poder utópico e faz entrar todo o espaço do religioso e do sagrado, todo o espaço do outro mundo, todo o espaço do contra-mundo, no interior mesmo do espaço que lhe está reservado. Então, o corpo, em sua materialidade, em sua carne, seria como o produto de suas próprias fantasias. Depois de tudo, acaso o corpo de um dançarino não é justamente um corpo dilatado segundo todo um espaço que lhe é interior e exterior ao mesmo tempo? E também os drogados, e os possuídos; os possuídos, cujo corpo se torna um inferno; os estigmatizados, cujo corpo se torna sofrimento, redenção e salvação, paraíso sangrante.

Bobagem dizer, portanto, como fiz no início, que meu corpo nunca está em outro lugar, quer era um aqui irremediável e que se opunha a toda utopia.

Meu corpo, de fato, está sempre em outro lugar. Está ligado a todos os outros lugares do mundo, e, para dizer a verdade, está num outro lugar que é o além do mundo. É em referência ao corpo que as coisas estão dispostas, é em relação ao corpo que existe uma esquerda e uma direita, um atrás e um na frente, um próximo e um distante. O corpo está no centro do mundo, ali onde os caminhos e os espaços se cruzam, o corpo não está em nenhuma parte: o coração do mundo é esse pequeno núcleo utópico a partir do qual sonho, falo, me expresso, imagino, percebo as coisas em seu lugar e também as nego pelo poder indefinido das utopias que imagino. O meu corpo é como a Cidade de Deus, não tem lugar, mas é de lá que se irradiam todos os lugares possíveis, reais ou utópicos.

Depois de tudo, as crianças demoram muito tempo para descobrir que têm um corpo. Durante meses, durante mais de um ano, não têm mais que um corpo disperso, membros, cavidades, orifícios, e tudo isto não se organiza, tudo isto não se corporiza literalmente, senão na imagem do espelho. De uma maneira mais estranha ainda, os gregos de Homero não tinham uma palavra para designar a unidade do corpo. Por mais paradoxal que possa parecer, diante de Tróia, sob os muros defendidos por Hector e seus companheiros, não havia corpo, havia braços levantados, havia peitos valorosos, pernas ágeis, cascos brilhantes acima das cabeças: não havia um corpo. A palavra grega que significa corpo só aparece em Homero para designar o cadáver. É esse cadáver, por conseguinte, é o cadáver e é o espelho que nos ensinam (enfim, que ensinaram os gregos e que ensinam agora as crianças) que temos um corpo, que esse corpo tem uma forma, que essa forma tem um contorno, que nesse contorno há uma espessura, um peso, numa palavra, que o corpo ocupa um lugar. O espelho e o cadáver assinalam um espaço à experiência profunda e originariamente utópica do corpo; o espelho e o cadáver fazem calar e apaziguam e fecham sobre um fecho – que agora está para nós selado – essa grande raiva utópica que deteriora e volatiliza a cada instante o nosso corpo. É graças a eles, ao espelho e ao cadáver, que o nosso corpo não é pura e simples utopia. Ora, se se pensa que a imagem do espelho está alojada para nós em um espaço inacessível, e que jamais poderemos estar ali onde estará o nosso cadáver, se pensamos que o espelho e o cadáver estão eles mesmos em um invencível outro lugar, então se descobre que só utopias podem encerrar-se sobre elas mesmas e ocultar um instante a utopia profunda e soberana de nosso corpo.

Talvez seria preciso dizer também que fazer o amor é sentir seu corpo se fechar sobre si, é finalmente existir fora de toda utopia, com toda a sua densidade, entre as mãos do outro. Sob os dedos do outro que te percorrem, todas as partes invisíveis do teu corpo se põem a existir, contra os lábios do outro os teus se tornam sensíveis, diante de seus olhos semi-abertos teu rosto adquire uma certeza, há um olhar finalmente par ver tuas pálpebras fechadas. Também o amor, assim como o espelho e como a morte, acalma a utopia do teu corpo, a cala, a acalma, a fecha como numa caixa, a fecha e a sela. É por isso que é um parente tão próximo da ilusão do espelho e da ameaça da morte; e se, apesar dessas duas figuras perigosas que o rodeiam, se gosta tanto de fazer o amor é porque, no amor, o corpo está aqui.