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Maura Lopes Cançado, da literatura ao cubículo 2
Autora do livro “Hospício é Deus”, um diário de suas internações psiquiátricas, publicado em 1965, e do volume de contos “O Sofredor do Ver” (1968), saudado pela crítica quando de seu lançamento, Maura é pouco lembrada hoje em dia – assim mesmo, mais como autora de denúncia e caso exemplar dos desmandos e da desumanidade do sistema psiquiátrico brasileiro das décadas de 50, 60 e 70, do que como produtora de uma literatura original, quase surrealista e de grande qualidade.
É essa faceta, a da escritora que também era louca – em oposição à figura da “louca que escrevia” – que a pesquisadora Célia Musilli busca resgatar em sua dissertação de mestrado “Literatura e loucura: a transcendência pela palavra”, defendida no Instituto de Estudos da Linguagem (IEL) da Unicamp. “Embora a loucura esteja muito presente na obra da Maura, o que eu queria era investigar a linguagem dela”, disse Célia ao Jornal da Unicamp. “É nesse sentido que falo que a gente não pode considerar apenas ‘a escritora louca’. Durante muito tempo, a Maura foi considerada isso, a escritora louca, e ponto. Todo mundo lembra dela assim, ‘Ah, a Maura, aquela que era louca’. Eu quis separar um pouco, dizer: é uma autora”.
Contos delirantes
“Quando vejo a obra, não me apego apenas à atribuição de loucura. Vejo o texto dela. E o texto da Maura tem umas coisas meio delirantes, sim, nos contos. Não são contos comuns. Não tem aquela coisa de começo, meio e fim. A linguagem às vezes parece um sonho, às vezes delírio, pelas imagens que cria. Realmente não é comum, mas isso é um atributo da ficção dela e que está presente na ficção de muitos outros que não são considerados loucos”, afirmou a pesquisadora.
Celia acredita que “o livro de contos, por si só, não denuncia a loucura dela”. É na comparação das duas obras – o diário “Hospício é Deus” e o volume de contos – que a influência da loucura e da vida nos manicômios na obra literária fica clara. “Tem a Alda, por exemplo, que era uma paciente do hospício, a Maura a transforma em personagem de conto. Ela leva situações do manicômio para a obra ficcional. Vários contos podem ser considerados manicomiais porque têm essa influência da vida dela no hospício, trazendo personagens de lá. Há uma correspondência clara entre a obra realista e alguns contos.”
A pesquisadora chama atenção para o caráter visual e também para os traços surrealistas da obra de Maura. “Eu analiso muito a questão do olhar. Nos contos dela, por exemplo, há títulos como ‘O Sofredor do Ver’, ‘A Menina que Via o Vento’. Percebi que Maura fazia uma espécie de filme do hospício: o relato dela é tão perfeito, no diário, que eu comparo ao cinema, é um filme, analiso como ela escreve criando cenas em minúcias”, explica. “Ela mesma dizia assim: esta realidade, só o cinema é capaz de mostrar. Ela imagina isso. Que o hospício, as barbaridades, e as coisas que via, só o cinema seria capaz de mostrar. Então eu analiso assim, como se Maura tivesse uma câmera na mão e fosse filmando. Ela cria uma linguagem, para mim, de grande impacto imagético.”
Um trecho de “Hospício é Deus”, citado na dissertação, diz: “O hospício é árido e atentamente acordado, em cada canto, olhos cor-de-rosa e frios, espiam sem piscar”. “Ela se sentia vigiada, e ao mesmo tempo testemunhava, vigiava também o hospício e relatava”, descreve a pesquisadora. “Ao mesmo tempo em que tinha um olho em cima dela, ela também punha o olho em cima das coisas”.
“Tem um conto dela, que é o que dá o título a ‘O Sofredor do Ver’, que gira em torno de três elementos: uma pedra, um homem e o olhar. É como se o olhar dele também fosse personagem. Entre a pedra e o homem está o olhar, o homem vendo a pedra. Então, ela trata de uma maneira muito diferente as coisas. Não é uma abordagem comum. O olhar passa a ser um personagem do conto”, relata Célia, demonstrando a relação intensamente visual da obra que analisou. “E há um conto chamado ‘O Espelho Morto’, em que alguém mata um espelho. Na verdade, atira-se uma pedra no espelho, o espelho se quebra e ela não tem mais a própria imagem. Ou seja, é o assassinato da própria imagem. Me parece também uma questão de identidade fragmentada pela loucura”, disse.
Surrealismo
Célia vê traços do surrealismo na obra de Maura e aprofunda esta questão, tocada apenas de passagem em outras pesquisas. “O livro de contos ‘O Sofredor do Ver’ apresenta um viés delirante, numa linguagem repleta de imagens poéticas e situações incomuns – e até mesmo extravagantes – que se aproximam da linguagem onírica. Isso me remete à linguagem surrealista, sendo este talvez um modo de abordar sua obra”, diz o texto da dissertação.
“Não estou afirmando que Maura era uma autora surrealista, mas há traços surrealistas que estão exatamente nessa linguagem do sonho, da realidade modificada, transformada: você vê um quadro do Dalí, tem um relógio torto – e o olhar da Maura, para a literatura, é um pouco isso, é um pouco dessa realidade transformada pelo olhar artístico. Ela cria todo um contexto literário delirante ou onírico, um contexto que solta faíscas, iluminando e desdobrando significados a partir da linguagem”, disse a pesquisadora.
Celia lembra que foram os surrealistas que trouxeram legitimidade à produção artística dos loucos. “O surrealismo é o primeiro movimento que adota a loucura, a obra do louco como uma linguagem. Antes, ninguém dava bola. Um Bispo do Rosário, por exemplo: antes do surrealismo, não queria dizer coisa alguma, era só um maluco. Com o surrealismo, incorpora-se a obra do louco como artística, então faço algumas comparações”.
A pesquisadora cita um episódio da vida de Maura que, para ela, lembra o “Teatro da Crueldade” de Antonin Artaud (1896-1948), que propunha levar o teatro ao limite do real. “Estavam fazendo um teatrinho lá no manicômio e a Maura era a Ofélia do Shakespeare, em Hamlet. E a personagem Ofélia se mata, na peça. O que a Maura fez, no dia? Ela subiu numa cachoeira, tirou a roupa e ameaçou se jogar. Ela quase faz do suicídio uma cena teatral. Este episódio depois aparece como tema do conto ‘Espiral Ascendente’.”
Deus
Filha de um rico fazendeiro, de uma tradicional família mineira, Maura quis aprender a pilotar avião aos 14 anos de idade. No curso para tirar brevê, apaixonou-se por um colega, com quem se casou e teve um filho, aos 15 anos, vindo a separar-se um ano depois. Aos 18 anos, interna-se voluntariamente numa clínica psiquiátrica de Belo Horizonte.
“Ninguém entendia o motivo desta internação, a não ser eu mesma: necessitava desesperadamente de amor e proteção. Estava magra, nervosa e não dormia. O sanatório parecia-me romântico e belo”, escreveu ela depois, em “Hospício é Deus”. Várias outras internações – quase duas dezenas – se seguiriam a essa.
Nos anos 50, mudou-se para o Rio, onde começou a ter seus contos publicados, com sucesso, no Jornal do Brasil, enquanto passava por mais tratamentos psiquiátricos. “Ela tem dois momentos, no diário, em relação aos colegas do Jornal do Brasil”, contou Célia. “Ou ela os admira e busca se aproximar deles, quando passa por problemas no hospício, ou os critica duramente. Este antagonismo é claro. Maura era uma atriz, no sentido de às vezes fazer cenas para serem vistas, para chamar a atenção. Aí, quando ela tinha alguma oposição, precisava se proteger, ela se revoltava e ligava para os colegas do Jornal do Brasil, para dizer, sabe, olha o que estão fazendo comigo. Ou então dizia: ‘ninguém me ajuda, ninguém me quer...’”
Durante uma dessas internações, em 1972, estrangula até a morte a paciente Maria das Graças Queiroz, sua colega de quarto. Isso a coloca num limbo jurídico: por um lado é esquizofrênica, inimputável; por outro, é considerada perigosa para ficar em liberdade, mas não há manicômio judiciário feminino para recebê-la. Assim, em 1977, a repórter Margarida Autran, de O Globo, a encontra, praticamente cega e abandonada, “irregularmente detida no Hospital Penal da Penitenciária Lemos de Brito, junto com presos comuns portadores de todos os tipos de moléstias contagiosas”. O título da entrevista de Margarida com Maura é: “Ninguém visita a interna do cubículo 2”.
Célia levanta uma hipótese sobre a origem do título do diário “Hospício é Deus”: “Cheguei à conclusão de que Deus, assim como o hospício, é inexplicável. São coisas tão grandes, tão abismais – num certo sentido, a loucura é um abismo. E Deus também tem essa profundidade, no sentido de que ninguém explica. Ninguém explica o hospício, a loucura. E ninguém explica Deus”.
“A Maura tinha uma relação muito rebelde com Deus”, prossegue a pesquisadora. Esta relação ambivalente aparece algumas vezes na sua obra, numa demonstração de seus conflitos íntimos, segundo Célia. “Maura chegou a dizer: Deus era o demônio da minha infância”.
Trecho
“Decorava o papel, andava pelo hall da Casa de Saúde recitando o dia todo, empolgada com meu desempenho (...) Até chegar a tarde da cachoeira: durante um ensaio do Hamlet senti-me estranha, aborrecida e desconfiada, todos pareciam conspirar contra mim. Apanhei o livro da peça encaminhei-me para a cachoeira, perto do sanatório (...) Nesta cachoeira desempenhei um dos maiores papéis de minha vida, ameaçando atirar-me de grande altura, ficando nua, achando-me muito bonita, e terminei laçada e arrastada por uma corda depois de três horas de rogos para que eu saísse de lá. Assim, Ofélia foi salva, nua, das águas da cachoeira.”
Ao se lembrar dos detalhes, relatando no diário o que fez, ela demonstra um perfeito nível de consciência sobre o ocorrido. O ato remete à linguagem concreta preconizada por Antonin Artaud no Teatro da Crueldade, um modo de encenação no qual o dramaturgo propõe um despertar de “nervos e coração”, um resgate da “ação imediata e violenta que o teatro deve conter”.
(Trecho de “Hospício é Deus”, seguido de comentário feito na dissertação de Célia Musilli)
Publicação
Dissertação: “Literatura e loucura: a transcendência pela palavra”
Autora: Célia MusilliOrientadora: Adélia Toledo Bezerra de MenesesUnidade: Instituto de Estudos da Linguagem (IEL)
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