quinta-feira, 12 de fevereiro de 2015

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A coragem de ser si mesma

Por Beatriz Preciado, em comitedisperso, 20/11/14 | Trad. UniNômade
“Sair do sonho coletivo da verdade de gênero, tal como se saiu da ideia de que o Sol gira ao redor da Terra.”

Quando recebi este convite de falar sobre a coragem de ser eu mesma, no começo meu ego ronronou. Como se tivessem me oferecido uma página publicitária em que eu fosse seu objeto, em vez de usuária. Eu já me via com uma medalha no peito, heroica. Depois, a memória dos oprimidos me atingiu e qualquer complacência se apagou.
Hoje, vocês me concederão o privilégio de evocar o “meu” valor de ser eu mesma, depois de ter-me feito carregar durante toda a minha infância o signo da exclusão e da vergonha. Vocês me oferecem este privilégio, como quem presenteia uma dose a um cirrótico, negando ao mesmo tempo os meus direitos fundamentais em nome da nação, confiscando as minhas células e os meus órgãos para a vossa política delirante. Me concedem esta coragem como presenteiam uma moeda a um ludopata, e depois me rechaçam a possibilidade de chamar-me pelo nome masculino ou associar o meu nome a adjetivos masculinos, só porque eu não tenho documentos oficiais necessários nem a barba.
Nos reunimos aqui como um grupo de escravos que têm sabido alargar seus grilhões mas que ficam mais ou menos disponíveis, que obtiveram seus diplomas e aceitam falar o idioma dos mestres. Estamos aqui, diante de vocês, todos nascidos em corpos femininos, Catherine Millet, Cécile Guibert, Hélèn Cixous, travas, bissexuais, mulheres de voz grossa, argelinas, judias, machonas, espanholas. Mas quando vocês se cansarão de assistir à nossa “coragem”, como se fosse uma diversão? Quando se cansarão de diferenciarem-nos para nos identificarem a vocês mesmas?
Me atribuem valor, suponho, porque eu lutei do lado das putas, das pessoas que vivem com Aids, das pessoas com deficiência. Em meus livros, falei de minhas práticas sexuais com vibradores e próteses. Falei de minha relação com o testosterona. Este é o meu mundo, a minha vida, e não a vivi com coragem, mas com entusiasmo e alegria. Mas vocês não sabem nada da minha alegria. Preferem compadecerem-se dela e me consignar a coragem, porque em nosso regime político sexual, imperante no capitalismo farmacológico, negar a diferença do sexo é como negar a encarnação de Cristo na Idade Média. Me atribuem uma grande coragem porque hoje, frente aos teoremas genéticos e aos documentos administrativos, negar a diferença de gênero é como cuspir na cara de um rei do século 15.
E me dizem: “Fale-nos da coragem de ser você mesma”, como os juízes do tribunal da inquisição falavam a Giordano Bruno durante oito anos: “Fale-nos do heliocentrismo, da impossibilidade da Santa Trindade”, enquanto isso, separavam a lenha da fogueira. Mas embora já se possam ver as chamas, penso como Giordano Bruno que não será suficiente uma pequena mudança de rumo, que se terá de mudar tudo, de estalar o campo semântico e o domínio pragmático. Sair do sonho coletivo da verdade de gênero, tal como se saiu da ideia de que o Sol gira ao redor da Terra.
Para falar de sexo, gênero e sexualidade, é necessário começar com um ato de ruptura epistemológica, um rechaço categórico, uma fratura da coluna conceitual que fará florescer uma emancipação cognitiva. Temos de abandonar por completo a linguagem da diferença de gênero e a identidade (inclusive a linguagem da identidade estratégica de Spivak, ou a identidade nômade de Rosi Braidotti). O gênero ou a sexualidade não são uma propriedade essencial da matéria, senão o produto de diversas tecnologias sociais e discursivas, de práticas políticas de gestão da verdade e da vida. O produto de sua coragem.
Não existem os gêneros e sexualidades, senão os usos do corpo reconhecidos como naturais ou castigados porque desviantes. E não serve lançar uma última carta transcendental: a maternidade como diferença chave. A maternidade é somente um dos vários usos possíveis do corpo, não é garantia da diferença de gênero ou da feminilidade.
Então fiquem com vosso valor. Mantenham-no para vossos casamentos e divórcios, vossos enganos e vossas mentiras, vossas famílias, vossa maternidade, vossos filhos e netos. Fiquem com a coragem que necessitam para seguir a norma. O sangue frio para prestar vosso corpo ao processo imparável da repetição regulada. O valor, como a violência e o silêncio, como a força e a ordem, estão de vosso lado. Ao contrário, eu hoje reivindico a legendária falta de coragem de Virginia Woolf e de Klaus Mann, de Audre Lorde e di Adrienne Rich, de Angela Davis e de Fred Moten, de Kathy Acker e de Annie Sprinkle, de June Jordan e de Pedro Lemebel, de Eve K. Sedgwick e de Gregg Bordowitz, de Guillaume Dustan e de Amelia Baggs, de Judith Butler e de Dean Spade.
Mas porque os amo, minhas corajosas semelhantes, desejo-lhes que percam o valor vocês também. Desejo-lhes que não tenham mais a força de repetir a norma nem de fabricar a identidade, que percam a fé no que dizem sobre vocês os documentos. E uma vez que tenham perdido vosso valor, cansadas da alegria, desejo-lhes que inventem uma maneira de usar vosso corpo. Justamente porque os amo, quero que sejam frágeis e desprezíveis. Porque é através da fragilidade que opera a revolução.
 
 

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