Investigado na Operação Sangue Frio teria adulterado laudo
de cirurgia
Médico teria combinado mudança em laudo de cirurgia que acabou em
óbito.
Investigado foi flagrado em escutas telefônicas em junho de 2012.
Em uma das ligações telefônicas interceptadas com
autorização da Justiça durante a Operação Sangue Frio, o ex-diretor do Hospital
Universitário de Campo Grande, José
Carlos Dorsa, teria combinado com outro cirurgião cardíaco para adulterar o
laudo de uma cirurgia que terminou em morte. O caso ocorreu há cerca de um ano.
A reportagem foi exibida no Bom Dia MS desta quarta-feira (29).
Procurado pela reportagem, o médico José Carlos Dorsa falou por telefone. Ele
disse que, por orientação do advogado, não irá gravar entrevista, mas afirmou
que as interceptações telefônicas, feitas durante a Operação Sangue Frio, são
diálogos entre especialistas e que fazem parte da rotina médica. Ele enfatizou
que não combinou alterações em laudos médicos.
A dona de casa Maria Domingues Lopes Dias, de 65 anos, sofria de estenose
aórtica e estava em tratamento. Os médicos não recomendavam a cirurgia
convencional no coração, ou seja, com a abertura do tórax, porque ela poderia
não resistir. Em junho de 2012, quando a dona de casa estava internada no
Hospital Regional de Campo Grande, a família recebeu a notícia de que ela seria
transferida para o Hospital Universitário (HU) de Campo Grande, para uma
cirurgia de implante de uma válvula no coração. O procedimento é menos invasivo
porque é feito por meio de um cateter.
Segundo a família, que prefere não se identificar, o médico João Jackson
Duarte foi quem fez o anúncio. Assim que a paciente foi transferida, Dorsa foi
avisado por um funcionário do HU que checou os exames encaminhados.
Funcionário: A paciente chegou aqui, do
Regional.
Dorsa: E foi para a 'tomo'
(tomografia)?
Funcionário: Não, acabou de chegar, faz um
minuto. Tem um 'eco' (ecocardiograma) aqui que parece que tem uma estenose
subaórtica aí, viu!
Dorsa: É, mas não tem não, nós já
olhamos.
No dia seguinte, a paciente estava na sala da hemodinâmica do HU para o
procedimento cirúrgico, quando Dorsa ligou para avisar à equipe que estava a
caminho.
Dorsa: Como que está aí?
Funcionário:
Vamos induzir já!
Dorsa: Quem que está
aí?
Funcionário: Jackson, Dr. Augusto,
Guilherme.
Dorsa: Fala que eu já estou chegando! Que esse
caso aí, eu já olhei a tomo (tomografia). Vou ter que abrir a barriga, que nem
aquela última, viu!
Quase três horas depois, o médico auxiliar saiu da sala para conversar com a
família. Mas a equipe médica só deixou o local cerca de cinco horas após o
início do procedimento.
Dorsa: Terminei aqui, viu. Estava uma tragédia grega a ponto
de chegar a isso. Eu vou falar com a família, tá, que a paciente morreu.
Tá?
Homem: Ai, meu Deus!
Ao deixar o hospital, Dorsa falou com seu assessor, Alcides Nascimento.
Alcides: Você está vindo do HU, né?
Dorsa:
Do HU. A paciente morreu, viu! Empoleirou a válvula, viu. Ficamos
tentando, tentando, abrimos o tórax. Fizemos o diabo aqui, cravou,
viu!
Alcides: Ahn. Faz parte da estatística, né?
No atestado de óbito, as causas da morte apontadas foram choque cardiogênico,
disfunção ventricular e estenose aórtica grave. Quem assinou foi o médico
Guilherme Viotto, o segundo auxiliar na cirurgia, na época residente do Hospital
Universitário.
No dia seguinte, em outro telefonema, Dorsa explicou como perfurou o
ventrículo da paciente.
Dorsa: Aquela guia ficou solta. E a hora que eu introduzi o
balão, a guia foi junto. E ela que fez um chicote lá dentro, e uma alça lá
dentro e furou aquela m...! Mas é isso. Eu acho que é o aprendizado, né?
A guia, citada no diálogo, é o que leva a válvula até o coração do paciente.
Um balão é inflado no local do implante e a válvula se prende às paredes da
aorta. Em outro telefonema, Dorsa falou sobre a cirurgia com outro médico da
equipe.
Dorsa: Sabe o que nós podíamos ter feito que nós não
fizemos?
Médico: Ahn.
Dorsa: Introduz
essa desgraça desse condutor no próprio PTFE (enxerto). Não gosto desse negócio
porque acontece algum acidente e é isso que dá! Porque as artérias, se acontece
qualquer coisa, você conserta. Tem jeito. O coração não tem
conserto.
Médico: Essa do PTFE (enxerto) também, nem me
toquei dessa aí, também!
Dorsa: É, não pensei. Também, fica
todo mundo dando palpite! O Jackson querendo fazer transapical, puxa você para
uma indicação que eu não gosto. E outra coisa, antes de acontecer qualquer
coisa, a pressão já tava a 3, antes de furar o ventrículo. Não é um furo, é um
rasgo.
Em outro trecho da conversa, Dorsa admite que não dominava a técnica.
Dorsa: Fazer cirurgia no coração e meter coisa lá dentro,
sem extracorpórea, não é comigo. Ah, eu não gosto de transapical. Mas vamos ter
que fazer, tudo bem. Mas vamos ter que fazer com cuidado absurdo, com uma
programação de estar ali pensando em tudo, cuidando das coisas. Muita coisa
agora já firmei.
Homem: É, muita coisa que a gente não
sabia. Né?
Dorsa: Não tinha noção de... não é noção. Você
vê, mas é só fazendo para você sentir o que que é o treco, né.
Homem:
É, deixar para os bem selecionados, né. E como você falou ontem, é um
aprendizado, né?
Dorsa: Exato.
O telefonema em que os médicos José Carlos Dorsa e João Jackson Duarte
combinam de alterar o relatório da cirurgia ocorreu 18 dias após a morte da
paciente.
Jackson: Como é que vai descrever aquela válvula
transcateter que abriu a mulher, lá?
Dorsa: Qual
mulher?
Jackson: Aquela que nós abrimos pra fazer
transapical e morreu no meio.
Dorsa: Ué, tem que falar que
fez transapical, né. Nós não fizemos transapical? Como é que
foi?
Jackson: Nós fizemos apical e furou o ventrículo. Põe
isso?
Dorsa: Não lembro agora o que que nós pensamos em
fazer. Não, não põe isso! Coloca que foi transapical e que evoluiu com disfunção
ventricular e que nós, é... conforme disfunção ventricular colocamos em
extracorpórea, porque .... entendeu?
Jackson: Mas nós não
colocamos em extracorpórea!
Dorsa: Eu sei, mas você vai
falar por que você abriu o tórax? Não pode falar que furou, né!
Consta do prontuário da paciente, arquivado no HU, que participaram do
procedimento José Carlos Dorsa, o primeiro auxiliar João Jackson Duarte e o
segundo auxiliar, Guilherme Viotto, o mesmo que assinou o atestado de óbito da
paciente. O relatório, assinado por Jackson, foi feito conforme o combinado.
Dorsa: Tem que descrever que evoluiu após implante com
disfunção ventricular, importante que evoluiu pro óbito. Pode falar que ampliou
a paractomia, pra fazer massagem cardíaca, né. E tentar colocar em
extracorpórea, né. Entendeu?
Jackson: Aí não põe que eu pus
em bomba, né?
Dorsa: Não, não põe! Evoluiu mal com... não
evoluiu, evoluiu com baixo débito, disfunção ventricular severa. Que não houve
retorno. Entendeu?
Jackson: Então tá.
Os médicos Guilherme Viotto e João Jackson Duarte também foram procurados
pela reportagem, mas eles não foram encontrados.