Brasil e Canadá inovam em
pesquisas sobre saúde mental
pesquisas sobre saúde mental
Projeto
rendeu debates, 40 teses, site, 54 artigos nacionais e internacionais, além de
oito capítulos de livros
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Especial para o JU
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Durante cinco anos, pesquisadores, estudantes, usuários e prestadores
de serviços da Unicamp e da Universidade de Montreal investigaram modelos de
saúde mental no Brasil e no Canadá. O projeto foi financiado pela Aliança de
Pesquisa Comunidade-Universidade (ARUC) do Canadá e buscou influenciar debates
acadêmicos e políticos em favor da luta contra o estigma das doenças mentais,
aproximar os serviços de saúde, a comunidade e a pesquisa acadêmica.
As abordagens de investigação tomaram, como base, metodologias
participativas e inclusivas de alunos de mestrado, doutorado e pós-doutorandos
e gerou 40 teses, 54 publicações nacionais e internacionais, oito capítulos de
livros, o site www.aruci-smc.org, dentre
outros produtos oriundos do projeto. A participação ativa dos usuários no
processo de investigação tornou-se um evento sem precedentes no Brasil.
“A quantidade de alunos envolvidos no projeto foi enorme. Só de
doutorado e pós-doutorado do Brasil foram 35 alunos. O que me encantou no
projeto foi fazer ciência aplicável engajada com a comunidade. Essa é uma
tendência mundial de pesquisa participativa inclusiva, que no Brasil tem pouco
desenvolvimento. Temos, por exemplo, um artigo recém-publicado nos Cadernos
HumanizaSUS, publicado pelo Ministério da Saúde, que foi escrito com a
participação dos próprios usuários dos serviços da saúde mental”, revelou
Rosana Teresa Onocko-Campos, médica do Departamento de Saúde Coletiva da
Faculdade de Ciências Médicas (FCM) da Unicamp e coordenadora do projeto ARUC.
O artigo “A experiência de produção de saber no encontro entre
pesquisadores e usuários de serviços públicos de saúde mental: A construção do
guia GAM” reuniu 27 autores entre docentes, mestrandos e doutorandos da
Unicamp, da Universidade Federal Fluminense e Universidade Federal do Rio
Grande do Sul e também usuários de serviço de saúde mental dos municípios de
Campinas (SP), Novo Hamburgo e São Leopoldo (RS), Rio de Janeiro e São Pedro da
Aldeia (RJ), e trabalhadores desses serviços. Segundo Onocko-Campos, o artigo
levou dois anos para ser escrito.
No Brasil, até a década de 1980, os hospitais psiquiátricos e os asilos
eram os principais locais de tratamento para pessoas com problemas mentais
graves. A Reforma Psiquiátrica instituiu uma nova política de saúde mental, que
teve, como um de seus principais recursos, o desenvolvimento dos Centros de
Atenção Psicossocial (CAPS) para o tratamento em saúde mental na comunidade,
possibilitando o seguimento ambulatorial e a atenção à crise.
Reconhecendo o contexto de utilização pouco crítica dos medicamentos nos
tratamentos em saúde mental, bem como o valor simbólico da medicação para
aqueles que a utilizam, foi desenvolvida em Quebec, no Canadá, o guia de Gestão
Autônoma da Medicação (GAM), para que os usuários tivessem acesso a informações
sobre seus tratamentos e pudessem reivindicar seus direitos e até mesmo a
retirada da medicação.
A versão brasileira não manteve o tema da retirada
da medicação, mas reforçou a tomada de decisões compartilhadas entre usuário e
profissional de saúde. O guia é dividido em passos, onde a pessoa é convidada a
fazer um balanço da própria vida para alcançar uma melhor qualidade de saúde.
“O guia GAM revelou que o uso dos medicamentos aumenta o poder dos
serviços de saúde mental, coisa que outras pesquisas avaliativas não haviam
conseguido mostrar. A medicação psiquiátrica ainda é usada como forma de
controle das pessoas. O grande paradoxo é que descobrimos que a palavra do
usuário é pouco ouvida na hora da prescrição da medicação nos serviços
comunitários de saúde mental”, disse Onocko-Campos.
A pesquisadora da FCM afirma que algumas pessoas têm comparado a
medicação psiquiátrica a remédios para hipertensão ou diabetes, como algo que
deve ser tomado a vida inteira. A diferença, alega, está na dosagem. Por meio
de um exame de sangue é possível ao médico prescrever qual a dose certa para o
controle da hipertensão ou diabetes. Já para os medicamentos que afetam
percepções e sensações, como os ansiolíticos, não há como ter essa dosagem por
meio de exames de laboratório.
“Se eu lhe dou um regulador de humor, como vou saber como está o seu
humor se não for confiando no que você me disse? Há pessoas que estão tomando
há anos medicamentos sem saber dos efeitos colaterais. Queremos trazer a
experiência do usuário para a tomada de decisão quanto a uma boa prescrição”,
revelou Onocko-Campos.
A pesquisa, com aprovação pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Unicamp,
respeitou os aspectos éticos e legais implicados no trabalho com pessoas,
sobretudo usuárias da rede de saúde mental. Os usuários da intervenção GAM
referiam-se ao grupo como um local para troca de um “saber experiencial” sobre
o medicamento, no qual cada um pôde contar sua vivência singular com relação ao
uso dos psicotrópicos.
Nas narrativas dos usuários, os CAPS foram descritos ora como lugar de
tratamento e cuidado positivamente avaliado, como fomentador de espaço de
escuta, de troca e produção de trabalho, ora como promotor de sentimentos de
baixo poder de troca e de participação. Foram identificados vários problemas
associados à dificuldade de comunicação sobre esse tema: relações desiguais de
poder, coerção, medo, timidez, uso de linguagem técnica, ausência de escuta
para a vivência pessoal e atribuição exclusiva de competências. Percebeu-se a
existência de um limite tênue entre o cuidado com a saúde dos usuários e a
tendência ao gerenciamento absoluto de suas vidas.
As pesquisas levaram à constatação de que ainda são necessárias mudanças
nas práticas em saúde mental, especialmente no que se refere à valorização da
experiência do usuário em seu tratamento.
“Nesses cinco anos de pesquisa, o que nos chamou a atenção foi o aspecto
da prescrição de medicamento tanto dentro da reforma psiquiátrica quanto nos
serviços comunitários, nos quais é feito de forma tradicional, com pouco
diálogo com os pacientes, muita verticalidade e assimetria na tomada de decisão
entre médicos e pacientes. A direção proposta é a de que o usuário, em vez de
ocupar um lugar de dependência na relação com o serviço, tenha o serviço como
espaço a partir do qual retome o seu lugar de cidadão. Isso foi uma diferença
que apareceu nos estudos comparados entre o Canadá e o Brasil”, revelou Onocko.
As pesquisas mostraram que a verticalidade do saber médico sobre o
usuário apareceu tanto no Brasil quanto no Canadá, mas o que torna os usuários
brasileiros mais frágeis, sobretudo os pacientes atendidos pelo Sistema Único
de Saúde (SUS), é a baixa escolaridade, o escasso poder aquisitivo, o acesso à
boa alimentação, a baixa qualidade da moradia e outros fatores, se comparados
ao nível de vida dos usuários canadenses.
“Como se não bastasse o estigma da doença mental, que gera uma certa
segregação social, a diferença cultural torna os usuários mais fragilizados.
Precisamos criar canais de comunicação para que os médicos mediquem
corretamente do ponto de vista farmacológico, quando necessário, mas com um
grau de permeabilidade com o que os pacientes sentem e acham”, reforçou
Onocko-Campos.
O projeto como um todo teve um sistema de governança muito particular,
pois permitiu inserir os alunos de pós-graduação em grandes grupos de pesquisa
e mudar conceitos. Depoimentos de alunos do Canadá e do Brasil mostram que,
depois de participarem do projeto ARUC, eles não conseguem fazer pesquisa sobre
as pessoas sem pensar o que elas acham.
De acordo com Onocko-Campos, a FCM da Unicamp está entrando com outro
pedido de financiamento no Canadá. A ideia é desdobrar o trabalho na apreensão
do processo do adoecimento, mantendo a ênfase na inclusão do usuário nos
estudos participativos, com maior refinamento e qualidade do ponto de vista
científico.
“Às vezes, tendemos a achar que inovação só existe na área mais dura –
engenharia, computação, matemática, física –, mas essa é uma pesquisa inovadora
dentro da internacionalização. Por conta desse trabalho, estamos buscando novos
convênios com a Universidade de Yale, nos Estados Unidos. E em setembro, vamos
para Londres conversar com pesquisadores do Kingdom College, o grupo mais
citado do mundo de avaliação de serviços mental. Hoje, as pesquisas são
aglutinadas em rede. Essa é uma nova tendência da ciência contemporânea”,
revelou Onocko-Campos.
Publicações
Artigo: A experiência de produção de saber no encontro
entre pesquisadores e usuários de serviços públicos de saúde mental: A
construção do guia GAM
Autores: Rosana Teresa Onocko Campos, Eduardo Passos,
Analice de Lima Palombini et ali
Unidades: Faculdade de Ciências Médicas da Unicamp,
Universidade Federal Fluminense, Universidade Federal do Rio Grande do Sul
Publicação: Cadernos HumanizaSUS, volume 5, Saúde
mental, 2015
Artigo: Human rights and the use of psychiatric medication
Autores: Lourdes Rodriguez del Barrio, Rosana Teresa
Onocko Campos, Sabrina Stefanello, Deivisson Vianna Dantas dos Santos, Ce´ line
Cyr, Lisa Benisty e Thais de Carvalho Otanari
Unidades: Universidade de Campinas e Universidade de
Montreal
Publicação: Journal of Public Mental Health, Vol. 13, nº. 4 2014, pp.
179-188
Artigo: A Gestão Autônoma da Medicação: uma intervenção
analisadora de serviços em saúde mental
Autores: Rosana Teresa Onocko Campos, Eduardo Passos,
Analice de Lima Palombini, Deivisson Vianna Dantas dos Santos, Sabrina
Stefanello, Laura Lamas Martins Gonçalves, Paula Milward de Andrade e Luana
Ribeiro Borges
Unidades: Faculdade de Ciências Médicas (FCM) da Unicamp,
Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal Fluminense,
Instituto de Psicologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul
Publicação: Ciência & Saúde Coletiva
18(10):2889-2898, 2013
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