O corpo utópico. Texto inédito de Michel Foucault
Nesta conferência de Michel Foucault – que acaba de ser
publicada em espanhol – o corpo é, em primeiro lugar, “o contrário de uma
utopia”, lugar “absoluto”, “desapiedado”, com o qual a utopia da alma se confronta.
Mas, finalmente, o corpo, “visível e invisível”, “penetrável e opaco”, é “o
ator principal de toda utopia” e cala apenas diante do espelho, do cadáver ou
do amor.
A conferência “O corpo utópico”, de 1966, integra o livro El
cuerpo utópico. Las heterotopías, cuja versão espanhola acaba de ser
publicada (Ed. Nueva Vision). Esta versão está publicada no jornal
argentino Página/12, 29-10-2010. A tradução é do Cepat.
Eis a conferência.
Basta eu acordar, que não posso escapar deste lugar que Proust [A
recuperação do corpo no processo do acordar é um tema recorrente na obra
de Marcel Proust – Nota da Redação], docemente, ansiosamente,
ocupa uma vez mais em cada despertar. Não que me prenda ao lugar – porque
depois de tudo eu posso não apenas mexer, andar por aí, mas posso movimentá-lo,
removê-lo, mudá-lo de lugar –, mas somente por isso: não posso me deslocar sem
ele. Não posso deixá-lo onde está para ir a outro lugar. Posso ir até o fim do
mundo, posso me esconder, de manhã, debaixo das cobertas, encolher o máximo
possível, posso deixar-me queimar ao sol na praia, mas o corpo sempre estará
onde eu estou. Ele está aqui, irreparavelmente, nunca em outro lugar. Meu corpo
é o contrário de uma utopia, é o que nunca está sob outro céu, é o lugar
absoluto, o pequeno fragmento de espaço com o qual, em sentido estrito, eu me
corporizo.
Meu corpo, topia desapiedada. E se, por ventura, eu
vivesse com ele em uma espécie de familiaridade gastada, como com uma sombra,
como com essas coisas de todos os dias que finalmente deixei de ver e que a
vida passou para segundo plano, como essas chaminés, esses telhados que se
amontoam cada tarde diante da minha janela? Mas, todas as manhãs, a mesma
ferida; sob os meus olhos se desenha a inevitável imagem que o espelho impõe:
rosto magro, costas curvadas, olhos míopes, careca, nada lindo, na verdade. Meu
corpo é uma jaula desagradável, na qual terei que me mostrar e passear. É
através de suas grades que eu vou falar, olhar, ser visto. Meu corpo é o lugar
irremediável a que estou condenado.
Depois de tudo, creio que é contra ele e como que para apagá-lo, que
nasceram todas as utopias. A que se devem o prestígio da utopia, da beleza, da
maravilha da utopia? A utopia é um lugar fora de todos os lugares, mas é um
lugar onde terei um corpo sem corpo, um corpo que será belo,
límpido, transparente, luminoso, veloz, colossal em sua potência, infinito em
sua duração, desligado, invisível, protegido, sempre transfigurado; e é bem
possível que a utopia primeira, aquela que é a mais inextirpável no coração dos
homens, seja precisamente a utopia de um corpo incorpóreo. O país das fadas,
dos duendes, dos gênios, dos magos, e bem, é o país onde os corpos se
transportam à velocidade da luz, onde as feridas se curam imediatamente, onde
caímos de uma montanha sem nos machucar, onde se é visível quando se quer e
invisível quando se deseja. Se há um país mágico é realmente para que nele eu
seja um príncipe encantado e todos os lindos peraltas se tornem peludos e feios
como ursos.
Mas há ainda outra utopia dedicada a desfazer os corpos. Essa utopia é o
país dos mortos, são as grandes cidades utópicas deixadas pela civilização
egípcia. Mas, o que são as múmias? São a utopia do corpo negado e
transfigurado. As múmias são o grande corpo utópico que persiste através do
tempo. Há as pinturas e esculturas dos túmulos; as estátuas, que, desde a Idade
Média, prolongam uma juventude que não terá fim. Atualmente, existem esses
simples cubos de mármore, corpos geometrizados pela pedra, figuras regulares e
brancas sobre o grande quadro negro dos cemitérios. E nessa cidade de utopia
dos mortos, eis aqui que meu corpo se torna sólido como uma coisa, eterno como
um deus.
Mas, talvez, a mais obstinada, a mais poderosa dessas utopias através
das quais apagamos a triste topologia do corpo nos seja administrada pelo
grande mito da alma, fornecido desde o fundo da história ocidental. A alma
funciona maravilhosamente dentro do meu corpo. Nele se aloja, evidentemente,
mas sabe escapar dele: escapa para ver as coisas, através das janelas dos meus
olhos, escapa para sonhar quando durmo, para sobreviver quando morro. A minha
alma é bela, pura, branca. E se meu corpo barroso – em todo o caso não muito
limpo – vem a se sujar, é certo que haverá uma virtude, um poder, mil gestos
sagrados que a restabelecerão em sua pureza primeira. A minha alma durará muito
tempo, e mais que muito tempo, quando o meu velho corpo apodrecer. Viva a minha
alma! É o meu corpo luminoso, purificado, virtuoso, ágil, móvel, tíbio,
fresco; é o meu corpo liso, castrado, arredondado como uma bolha de sabão.
E eis que o meu corpo, pela virtude de todas essas utopias, desapareceu.
Desapareceu como a chama de uma vela que alguém sopra. A alma, as tumbas, os
gênios e as fadas se apropriaram pela força dele, o fizeram desaparecer em um
piscar de olhos, sopraram sobre seu peso, sobre sua feiúra, e me restituíram um
corpo fulgurante e perpétuo.
Mas meu corpo, para dizer a verdade, não se deixa submeter com tanta
facilidade. Depois de tudo, ele mesmo tem seus recursos próprios e fantásticos.
Também ele possui lugares sem-lugar e lugares mais profundos, mais obstinados
ainda que a alma, que a tumba, que o encanto dos magos. Tem suas bodegas e seus
celeiros, seus lugares obscuros e praias luminosas. Minha cabeça, por exemplo,
é uma estranha caverna aberta ao mundo exterior através de duas janelas, de
duas aberturas – estou seguro disso, posto que as vejo no espelho. E, além
disso, posso fechar um e outro separadamente. E, no entanto, não há mais que
uma só dessas aberturas, porque diante de mim não vejo mais que uma única
paisagem, contínua, sem tabiques nem cortes. E nessa cabeça, como acontecem as
coisas? E, se as coisas entram na minha cabeça – e disso estou muito seguro, de
que as coisas entram na minha cabeça quando olho, porque o sol, quando é muito
forte e me deslumbra, vai a desgarrar até o fundo do meu cérebro –, e, no
entanto, essas coisas ficam fora dela, posto que as vejo diante de mim e, para
alcançá-las, devo me adiantar.
Corpo incompreensível, penetrável e opaco, aberto e fechado: corpo
utópico. Corpo absolutamente visível – porque sei muito bem o que é ser visto
por alguém de alto a baixo, sei o que é ser espiado por trás, vigiado por cima
do ombro, surpreendido quando menos espero, sei o que é estar nu. Entretanto,
esse mesmo corpo é também tomado por uma certa invisibilidade da qual jamais
posso separá-lo. A minha nuca, por exemplo, posso tocá-la, mas jamais vê-la; as
costas, que posso ver apenas no espelho; e o que é esse ombro, cujos movimentos
e posições conheço com precisão, mas que jamais poderei ver sem retorcer-me
espantosamente. O corpo, fantasma que não aparece senão na miragem de um
espelho e, mesmo assim, de maneira fragmentada. Necessito realmente dos gênios
e das fadas, e da morte e da alma, para ser ao mesmo tempo indissociavelmente
visível e invisível? E, além disso, esse corpo é ligeiro, transparente,
imponderável; não é uma coisa: anda, mexe, vive, deseja, se deixa atravessar
sem resistências por todas as minhas intenções. Sim. Mas até o dia em que fico
doente, sinto dor de estômago e febre. Até o dia em que estala no fundo da
minha boca a dor de dentes. Então, então deixo de ser ligeiro, imponderável,
etc.: me torno coisa, arquitetura fantástica e arruinada.
Não, realmente, não se necessita de magia, não se necessita de uma alma
nem de uma morte para que eu seja ao mesmo tempo opaco e transparente, visível
e invisível, vida e coisa. Para que eu seja utopia, basta que seja um corpo.
Todas essas utopias pelas quais esquivava o meu corpo, simplesmente tinham seu
modelo e seu ponto primeiro de aplicação, tinham seu lugar de origem em meu
corpo. Estava muito equivocado há pouco ao dizer que as utopias estavam
voltadas contra o corpo e destinadas a apagá-lo: elas nasceram do próprio corpo
e depois, talvez, se voltarão contra ele.
Uma coisa, entretanto, é certa: o corpo humano é o ator principal de
todas as utopias. Depois de tudo, uma das utopias mais velhas que os homens
contaram a si mesmos, não é o sonho de corpos imensos, sem medidas, que
devorariam o espaço e dominariam o mundo? É a velha utopia dos gigantes, que se
encontra no coração de tantas lendas, na Europa, na África, na Oceania, na
Ásia. Essa velha lenda que durante tanto tempo alimentou a imaginação
ocidental, de Prometeu a Gulliver.
O corpo é também um grande ator utópico quando se pensa nas máscaras, na
maquiagem e na tatuagem. Usar máscaras, maquiar-se, tatuar-se, não é
exatamente, como se poderia imaginar, adquirir outro corpo, simplesmente um
pouco mais belo, melhor decorado, mais facilmente reconhecível. Tatuar-se,
maquiar-se, usar máscaras, é, sem dúvida, algo muito diferente; é fazer entrar
o corpo em comunicação com poderes secretos e forças invisíveis. A máscara, o
sinal tatuado, o enfeite colocado no corpo é toda uma linguagem: uma linguagem
enigmática, cifrada, secreta, sagrada, que se deposita sobre esse mesmo corpo,
chamando sobre ele a força de um deus, o poder surdo do sagrado ou a vivacidade
do desejo. A máscara, a tatuagem, o enfeite coloca o corpo em outro espaço, o
fazem entrar em um lugar que não tem lugar diretamente no mundo, fazem desse
corpo um fragmento de um espaço imaginário, que entra em comunicação com o
universo das divindades ou com o universo do outro. Alguém será possuído pelos
deuses ou pela pessoa que acaba de seduzir. Em todo o caso, a máscara, a
tatuagem, o enfeite são operações pelas quais o corpo é arrancado do seu espaço
próprio e projetado a outro espaço.
Escutem, por exemplo, este conto japonês e a maneira como um tatuador
faz passar a um universo que não é o nosso o corpo da jovem que ele deseja:
O sol lançava seus raios sobre o rio e incendiava o
quarto das sete esteiras. Seus raios refletidos sobre a superfície da água
formavam um desenho de ondas douradas sobre o papel dos biombos e sobre o rosto
da jovem em sono profundo. Seikichi, depois de ter corrido os
tabiques, tomou entre as suas mãos suas ferramentas de tatuagem. Durante alguns
instantes permaneceu imerso numa espécie de êxtase. Precisamente agora
saboreava plenamente a estranha beleza da jovem. Parecia-lhe que podia permanecer
sentado diante desse rosto imóvel durante dezenas ou centenas de anos sem
jamais experimentar nem cansaço nem aborrecimento. Assim como o povo de Mênfis
embelezava outrora a terra magnífica do Egito de pirâmides e de esfinges,
assim Seikichi, com todo o seu amor, quis embelezar com seu desenho
a pele fresca da jovem. Aplicou-lhe de imediato a ponta de seus pincéis de cor
segurando-os entre o polegar, e os dedos anular e pequeno da mão esquerda, e à
medida que as linhas eram desenhadas, picava-as com sua agulha que segurava na
mão direita.
E quando se pensa que as vestimentas sagradas ou profanas, religiosas ou
civis fazem o indivíduo entrar no espaço fechado do religioso ou na rede
invisível da sociedade, então se vê que tudo quanto toca o corpo – desenhos,
cores, diademas, tiaras, vestimentas, uniformes – faz alcançar seu pleno
desenvolvimento, sob uma forma sensível e abigarrada, as utopias seladas no
corpo.
Mas, se fosse preciso descer mais uma vez abaixo das vestimentas, se
fosse preciso alcançar a própria carne, e então se veria que em alguns casos,
em seu ponto limite, é o próprio corpo que volta contra si seu poder utópico e
faz entrar todo o espaço do religioso e do sagrado, todo o espaço do outro
mundo, todo o espaço do contra-mundo, no interior mesmo do espaço que lhe está
reservado. Então, o corpo, em sua materialidade, em sua carne, seria como o
produto de suas próprias fantasias. Depois de tudo, acaso o corpo de um
dançarino não é justamente um corpo dilatado segundo todo um espaço que lhe é
interior e exterior ao mesmo tempo? E também os drogados, e os possuídos; os
possuídos, cujo corpo se torna um inferno; os estigmatizados, cujo corpo se
torna sofrimento, redenção e salvação, paraíso sangrante.
Bobagem dizer, portanto, como fiz no início, que meu corpo nunca está em
outro lugar, quer era um aqui irremediável e que se opunha a toda utopia.
Meu corpo, de fato, está sempre em outro lugar. Está
ligado a todos os outros lugares do mundo, e, para dizer a verdade, está num
outro lugar que é o além do mundo. É em referência ao corpo que as coisas estão
dispostas, é em relação ao corpo que existe uma esquerda e uma direita, um
atrás e um na frente, um próximo e um distante. O corpo está no centro do
mundo, ali onde os caminhos e os espaços se cruzam, o corpo não está em nenhuma
parte: o coração do mundo é esse pequeno núcleo utópico a partir do qual sonho,
falo, me expresso, imagino, percebo as coisas em seu lugar e também as nego
pelo poder indefinido das utopias que imagino. O meu corpo é como a Cidade de
Deus, não tem lugar, mas é de lá que se irradiam todos os lugares possíveis,
reais ou utópicos.
Depois de tudo, as crianças demoram muito tempo para descobrir que têm
um corpo. Durante meses, durante mais de um ano, não têm mais que um corpo
disperso, membros, cavidades, orifícios, e tudo isto não se organiza, tudo isto
não se corporiza literalmente, senão na imagem do espelho. De uma maneira mais
estranha ainda, os gregos de Homero não tinham uma palavra para designar a
unidade do corpo. Por mais paradoxal que possa parecer, diante de Tróia, sob os
muros defendidos por Hector e seus companheiros, não havia
corpo, havia braços levantados, havia peitos valorosos, pernas ágeis, cascos
brilhantes acima das cabeças: não havia um corpo. A palavra grega que significa
corpo só aparece em Homero para designar o cadáver. É esse cadáver, por
conseguinte, é o cadáver e é o espelho que nos ensinam (enfim, que ensinaram os
gregos e que ensinam agora as crianças) que temos um corpo, que esse corpo tem
uma forma, que essa forma tem um contorno, que nesse contorno há uma espessura,
um peso, numa palavra, que o corpo ocupa um lugar. O espelho e o cadáver
assinalam um espaço à experiência profunda e originariamente utópica do corpo;
o espelho e o cadáver fazem calar e apaziguam e fecham sobre um fecho – que agora
está para nós selado – essa grande raiva utópica que deteriora e volatiliza a
cada instante o nosso corpo. É graças a eles, ao espelho e ao cadáver, que o
nosso corpo não é pura e simples utopia. Ora, se se pensa que a imagem do
espelho está alojada para nós em um espaço inacessível, e que jamais poderemos
estar ali onde estará o nosso cadáver, se pensamos que o espelho e o cadáver
estão eles mesmos em um invencível outro lugar, então se descobre que só
utopias podem encerrar-se sobre elas mesmas e ocultar um instante a utopia
profunda e soberana de nosso corpo.
Talvez seria preciso dizer também que fazer o amor é sentir seu corpo se
fechar sobre si, é finalmente existir fora de toda utopia, com toda a sua
densidade, entre as mãos do outro. Sob os dedos do outro que te percorrem,
todas as partes invisíveis do teu corpo se põem a existir, contra os lábios do
outro os teus se tornam sensíveis, diante de seus olhos semi-abertos teu rosto
adquire uma certeza, há um olhar finalmente par ver tuas pálpebras fechadas.
Também o amor, assim como o espelho e como a morte, acalma a utopia do teu
corpo, a cala, a acalma, a fecha como numa caixa, a fecha e a sela. É por isso
que é um parente tão próximo da ilusão do espelho e da ameaça da morte; e se,
apesar dessas duas figuras perigosas que o rodeiam, se gosta tanto de fazer o
amor é porque, no amor, o corpo está aqui.
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