domingo, 27 de janeiro de 2013

O QUEIJO, A FACA, E A FOME DE DAMIÃO

O QUEIJO
 


O filme chama-se “O Mineiro e o Queijo (2011)”, do também mineiro Helvécio Ratton. É um belo filme. E mostra principalmente a riqueza e a simplicidade de pessoas e queijos, feitos no território de MG (nesse estado é sabido por todos, que ali, queijo, é uma verdadeira “paixão”, e confesso, apesar de ter nascido em SP, também adoro, e minha mãe também...). São “queijos artesanais”, feitos em pequenas propriedades de terra, a partir de receitas passadas de geração em geração, ao longe de muitas décadas. Além disso, a qualidade do queijo é única. No filme, algumas pessoas dizem: “é a bactéria do lugar”. Outras: “é a água, o clima, a terra, a Barcelona (nome da vaca leiteira).” “É a receita, o jeito”. “O modo, o armazenamento, a quantidade reduzida produzida”. “A cura.”...

Enfim, é tudo isso junto, que produz um queijo único, inigualável na qualidade/sabor. Para se ter uma ideia, esses “ingredientes” todos, proporcionam um queijo que é comparado aos feitos em países como a França e Itália (lugares onde de diz fabricar os melhores queijos do mundo). Especialistas gastronômicos (como o Ayala), dizem que esses queijos mineiros, são tão quanto melhores, que os importados da Europa. Uma verdadeira iguaria nacional!

Porém, outra discussão central que o filme faz, é que esse “Patrimônio Brasileiro” – o “queijo de minas”, está “proibido” de certa forma, para o próprio Brasil, e até para o mundo. E porque isso está acontecendo? É que devido a nossa legislação relacionada aos produtos alimentícios (lácteos no caso), esses queijos não podem, e não são “exportados” para outros lugares, estados, casas, mesas e restaurantes por aí. É aquele negócio de vigilância sanitária. E é aquele negócio das “burrocracias”, que existem massificamente por aqui.

E essa “proibição”, envolve também muitas outras questões...

Como a questão básica, da própria alienação mercadológica no qual, nosso sistema de vida está inserido. Onde o que apenas “existe”, em termos de mercado, é a escala “macro”. É o latifundiário, são os grupos intercontinentais do agronegócio (Bunge, Cargill, Monsanto, ADM, e algumas outras), que fazem comprimir tanto aquele pequeno/médio agricultor (de forma indireta, não sejamos injustos com elas, e outra: agora elas estão mesmo é “comendo a Amazônia”), lavrador, criador, vendedor, que a única saída é venderem seu pequeno espaço de terra, para depois ir comprarem uma “casinha”, e “viverem” nas periferias da cidade.

Envolve também aquela questão do “movimento de manada”, onde entramos em redes de hipermercados (parecendo grupos de búfalos, ou de onças, ou de psitacídeos), e o que apenas encontramos para comprar, são queijos fabricados em escala industrial. E aquele queijo que é diferente, que é feito de maneira única, com sabores atípicos, não tem nenhum espaço no mercado. A criatividade, a diversidade, quase nunca mesmo, tem espaços nas prateleiras.

Acredito que os produtores do interior de MG, não querem que seus queijos percorram o mundo talvez, nem mesmo que eles sejam ingredientes de pratos de famosos restaurantes. Eles apenas querem continuar fazendo o que aprenderam a fazer: sobreviver da fabricação dos queijos.

O filme mostra pessoas reais e belas. É aquela qualidade difícil de enxergar: a grandeza existente na simplicidade. É um filme que de forma clara, mostra como é obtusa a nossa postura, de que apenas o que vem “de fora” (os queijos da França, por exemplo), é o que tem algum valor. E como as tradições, a cultura, em países como o nosso, a cada dia mais se esvai, de maneira tão fugaz.

Pois no fundo, no quintalzinho daquele sitiante maltratado pelo sol, que trabalha deveras, que antes andava apenas de charrete, e agora anda de bicicleta também, e que tem umas 6 vacas leiteiras “apenas”, pode produzir, um dos melhores queijos do mundo.

 
 
 
 
 


A FACA

Aproveitando o ensejo, gostaria de falar, sobre outro filme extraordinário e premiadíssimo que assisti de Ratton (sei muito pouco sobre esse diretor. Só conheço mesmo esses dois de seus filmes). O “Em Nome da Razão” (1079) é tão quanto político, do que “O Mineiro e o Queijo”, porém ao invés de “belo”, como poderia ser classificado esse último, o “Em Nome da Razão” é extremamente perturbador e “hediondo”.

O filme retratou, um pouco, do cotidiano do grande Hospital Psiquiátrico Colônia, de Barbacena – MG, que existiu por muitos anos no nosso país. Já ouvi dizer que de tantas pessoas que morriam nesse lugar (aos montes, milhares, reza a lenda que ali até, havia um grande comércio de fornecimento de cadáveres para as escolas de Medicina), os urubus que por ali sobrevoavam, era visão constante acima do lugar.

Um dos criadores da “Psiquiatria Democrática Italiana”, que tem suas ideias difundidas por todo mundo, inclusive influenciando fortemente alguns pilares do SUS, Franco Basaglia, em visita ao Hospital de Barbacena, na década de 70, comparou-o aos Campos de Concentração de Auschwuitz na Polônia, onde os Alemães exterminavam judeus, entre outros povos, tamanha foi a “visão do inferno” que viu ali também.

E Helvécio registou todo esse cenário com sua câmera. E esse filme é uma obra de arte, referência para nossa história, em um dos seus ângulos mais sombrios. Esse hospital foi fechado, e me parece que hoje existe um bonito movimento da sociedade de Barbacena, para reescrever pelo menos em partes, esse passado. Fiquei sabendo que por lá, anualmente, realizam o “Festival da Loucura”.

Contudo, ainda falando sobre o Hospital de Barbacena, e por que não falar de muitos outros lugares que ainda hoje estão em “pleno” funcionamento (considerados como “de saúde”: hospitais, hospitais de custódia, emergências, comunidades terapêuticas, etc., onde se morrem “levianamente assassinas” muitas pessoas, sob a insígnia da Psiquiatria. Alguém duvida? Quem duvidar - dois exemplos - é só ler algo sobre o recente caso do sistema de saúde mental de Sorocaba – SP, ou assistir o filme da Débora Diniz, “A Casa dos Mortos” (2010)), outro aspecto que talvez ainda faça parte dessa história, e do presente também, com suas mesmas instituições, com a mesma lógica e artimanhas, com os mesmos atores e novos recrutas, com a mesma concepção degradante e descartável do ser humano, ainda se perpetuarem, se reproduzirem, serem “abafadas a todo custo”, seja o estado de impunidade em que elas e nós, coexistimos.

Até bem pouco tempo, “vira e mexe”, víamos um ou outro nazista, ou coisa parecida, daquela época passada, ser encontrado (obs.: até o acharem, vivia se escondendo como um rato, e podia já até estar caduco), preso, julgado, e ter sua história “canibal” difundida por todo mundo (agora, acho que não deve existir mais nenhum daquela época, todos devem já ter morrido).

Ou seja, essa história, nunca deve ser deixada de ser contada. Nunca devemos nos esquecer do que foi o Nazismo. Penso que aquilo que é esquecido, nesse caso, pode retornar mais facilmente. E também, temos que exigir que as pessoas responsáveis, por esses dois holocaustos que estou citando, tanto o dos nazistas, como os que acontecem com as pessoas consideradas “doentes mentais” aqui no Brasil, devem ser julgadas, para que ocorra algum tipo de justiça.

Mas aqui, nada é julgado, e ninguém nunca foi condenado nesses casos de assassinato de doentes mentais. E por que os nazistas são condenados, apesar de anos depois de acontecido o massacre, e aqui não? Talvez, quando falamos de nazismo, lembramos de judeus mortos. E os judeus, como sabemos, são um povo rico e influente no mundo todo. Aqui, os doentes mentais, fazem parte geralmente “da ralé”.Os descamisados, os “sem dono”, os “zé ninguém”. Nesse caso do Hospital Psiquiátrico de Barbacena, eu nunca ouvi falar de ninguém ser responsabilizado. Nem os diretores, nem os técnicos, nem gestores, nem mesmo um bode expiatório qualquer.

Esses tempos, eu li uma série de interessantes matérias, da jornalista, Daniela Arbex (ela ganhou prêmios com esse trabalho), com o título“Holocausto brasileiro: 50 anos sem punição”, retratando exatamente o Hospital Psiquiátrico de Barbacena. Ou seja, até hoje, esse holocausto, (e parece que vai ficar para sempre) os seus responsáveis, estão “intocados”, impunes.

Abaixo, os títulos da série das matérias e o link (publicadas em um jornal mineiro):







-A história por trás da história

Naspáginas dessas matérias, existem algumas fotografias. Elas haviam sido publicadas naquela revista antiga “O Cruzeiro”. Foram tiradas por um fotógrafo chamado Luiz Alfredo, publicadas em 1961. Existem também outras fotos, que Daniela publicou, para retratar o antes e o depois, e de como estaria a vida hoje, daquelas pessoas, depois de tanto tempo, após o click de Luiz. Abaixo, fotografias (todas da reportagem):



 
 
 
 


E A FOME DE DAMIÃO

Até esses dias, um livro foi alvo de uma ação judicial impetrada pela Federação dos Hospitais do Brasil (FHB), contra o Conselho Federal de Psicologia (CFP) (que o publicou). O objetivo era querer impedir sua divulgação. Esse livro trouxe a tona, alguns casos recentes, de mortes ocorridas em instituições psiquiátricas. A Federação perdeu a ação.

O livro chama-se “A Instituição Sinistra – Mortes Violêntas em Hospitais Psiquiátricos no Brasil” (2004). Ele conta em detalhes, alguns casos, de pessoas que morreram e suas sinistras circunstâncias, em instituições localizadas por todo o país.

Um dos casos descritos, é o do Damião Ximenes. Segundo o relato da própria mãe de Damião, o que ocorreu:

De acordo com os autos, A.V.L., mãe de Damião, internou o filho na Casa de Repouso no dia 1º de outubro de 1999, com perfeita integridade física. Ao retornar, quatro dias depois para visitá-lo, foi informada de que não poderia vê-lo. Inconformada, passou a chamá-lo em voz alta pelo nome. Em seguida, Damião atendeu aos chamados da mãe e surgiu em estado degradante: com as mãos amarradas para trás, defecado, urinado em suas vestes, sangrando no rosto e aos prantos gritando “polícia, polícia”.

Ainda de acordo com os relatos da mãe, ao comprar um refrigerante, Damião o ingeriu de maneira desesperada, o que a levou a crer que não lhe davam água há bastante tempo.

Aflita com a situação, chamou o médico plantonista da instituição, Francisco Ivo de Vasconcelos que, de maneira desrespeitosa respondeu:“deixa morrer, pois quem nasce é para morrer” e “pára de chorar que eu não gosto de choro, pois não assisto novela porque novela tem choro”.A.V.L. alega ainda que o médico prescreveu medicamento a Damião sem sequer examiná-lo e que, em seguida, dois enfermeiros o conduziram ao banho, não permitindo que ela o acompanhasse. Logo depois, segundo relatos da mãe, ela encontrou Damião jogado ao chão, despido e ainda de mãos atadas.

Sem nada poder fazer, retornou à casa de sua família, na cidade de Varjota, em busca de ajuda. Lá recebeu ligação da Casa de Repouso Guararapes, solicitando sua presença urgentemente. Ao chegar, soube do falecimento do filho.”

Quando eu li essa história de Damião (e as outras do livro também não são menos “cabulosas”), estarrecido, fui procurar mais algumas informações. E encontrei outro livro: DAMIÃO XIMENES - Primeira Condenação do Brasil na Corte Interamericana de Direitos Humanos (2009) – de Nadine Borges. O livro, principalmente, retrata a trajetória judicial, de como um caso que aqui no Brasil não teve respeito nenhum, por parte das autoridades, chegar até uma corte internacional de Direitos Humanos, para ter um pouco de “voz” (condenação do Brasil!). No livro também, é retratado o sofrimento da família, de alguns fatos ocorridos antes e depois da morte de Damião. Desde o contato dos familiares com a autora, passando pelo processo legal/médico, as manipulações dos prontuários/documentos, as ameaças sofridas pela família, cita alguns dos políticos (será alguém conhece algum político de sobrenome Gomes, do Ceará?) que faziam “pano de fundo” (óbvio) do caso, alguns deles, eram aqueles “médicos-políticos-empresários”,donos de algumas instituições de saúde, e com forte influência nos poderes da região (essas histórias não param de se repetir/aproximar/perpetuar. Um eminente professor, me disse recentemente, que o médico dono das instituições psiquiátricas de Sorocaba, onde dezenas recentemente perderam a vida, é também irmão do Prefeito eleito agora da cidade de São Paulo).

Enfim, em 2006, o Brasil foi condenado. Pela primeira vez.

Às singelas dúvidas sempre surgem. E a “eterna” fome...

“Tribunal Internacional” - por que não os tribunais daqui?

“2006” – Damião foi assassinado em 1999... e os casos de Barbacena, quanto tempo mais aquelas família, a sociedade, terão que esperar?

“Primeira vez” - depois de tantas mortes e sofrimento (como tentei fazer alusão acima e acredito ser “só a ponta do iceberg”)?

No site do Observatório de Saúde Mental, uma importante notícia de 2010, trouxe que:

“Por unanimidade, a 2ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Estado do Ceará (TJCE) condenou a Casa de Repouso Guararapes, de Sobral, o médico Francisco Ivo de Vasconcelos e o diretor clínico, Sérgio Antunes Ferreira Gomes a pagar R$ 150 mil em indenização à A.V.L., mãe de Damião Ximenes Lopes, paciente morto nas dependências da instituição em outubro de 1999. A decisão mantém a sentença proferida pelo Juízo da 5ª Vara da Comarca de Sobral, que havia julgado, em 2008, procedente o pedido de indenização por danos morais.”
 


O Link da notícia sobre o caso Damião: http://osm.org.br/osm/justica-condena-envolvidos-caso-damiao-ximenes/

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