sexta-feira, 22 de fevereiro de 2013

Os objetos/dejetos da UTI


“A noção de que qualquer vida, vale a pena ser vivida. E portanto, ela deve radicalmente ser defendida pelas práticas de saúde... Nós temos séculos de história, que mostra exatamente o contrário, mostra que a vida das pessoas não é considerada equivalente. E que muitas vidas, não vale a pena ser defendida.” – Emerson Merhy - Médico - professor da UFRJ (Palestra proferida em 2011)

         Uma questão que muito chocou algumas pessoas essa semana, foi a “postura” da médica de Curitiba, chefe de uma UTI de um grande hospital. Pelo que eu andei escutando dela, ela vem ganhando contornos cada vez mais “psicopata” a sua pessoa.

(Psicopata quase no mesmo sentido que Rubens Alves fala classificando um político que desvia verbas públicas, em prol de sua volúpia e ganância. Dinheiro esse, que poderia matar a fome de crianças na merenda de uma creche da periferia, ou comprar materiais e medicamentos de saúde, ou mesmo melhorar a situação de nossas ruas e estradas, no qual tantas vidas são ceifadas diariamente. Enfim, psicopatas engravatados: pouco ou nenhum senso de coletividade (senso social), afetividade nula também, e "matando" friamente muitas pessoas. E ainda se mostram sorridentes em eventos e na TV.)

Eu conversando com uma amiga, ela me questionou um incômodo aspecto: por que ninguém que trabalhava nesse hospital, denunciou essa médica?

Eu respondi: porque ela era a chefe...

E ela retrucou: mas então eles eram coniventes com ela, ou seja, participavam das mortes...

Eu: mas ela tacava tamanco nos seus subordinados. Se algum técnico de enfermagem a desagradasse, ela berrava palavrões contra ele... Ela chamava a equipe com um apito para se ter uma ideia... Fiquei sabendo dessas coisas, e não duvido absolutamente de nada...

Ela: se eu trabalhasse lá, eu faria pelo menos uma denúncia anônima.

        

Na discussão sobre a eutanásia, eu sou a favor, apesar de pouco “entender”, e talvez nem mesmo querer, pensar nesse assunto. Muito sentido me faz, uma pessoa optar, por sua própria vontade, numa “opção” mais “leve”, para que sua agonia final, seja antecipada, digamos.

         Sei que muito especialistas de saúde, atualmente discutem essa questão dos cuidados com os nossos moribundos. Já que possivelmente, em crescimento, a população vai se envelhecendo, e os cuidados com pessoas idosas aumentando. As verbas públicas, a atenção à saúde, o dinheiro, ou seja, muito se discute sobre esse aumento de custos que a humanidade terá, incidindo no cuidado com pessoas que vão adoecendo aos poucos...

         Muitos dizem: vamos cuidar de um idoso, deixá-lo em uma vaga de UTI, sabendo que ele terá pouca ou nenhuma sobrevida, e às vezes, lhe prescrevendo apenas cuidados paliativos, ou, vamos nos concentrar em uma criança doente, sendo que ela precisa, ou pode precisar, da mesma vaga na UTI que esse idoso ocupa?  Já li renomados especialistas em saúde, pontuarem que essa é uma questão muito a se pensar.

         Lembrei-me daquela história dos elefantes... Dizem que eles numa certa idade avançada, desvinculam-se da manada, e morrem sozinhos, voltando ao lugar onde nasceram. E também existe aquele filme japonês, que não me lembro do nome e nunca o assisti, mas me contaram, que mostra um senhor de bastante idade, que é levado nas costas pelo filho, por sua própria vontade, a um casebre no alto da montanha, para lá morrer sozinho e afastado da sua comunidade.

         Nós não somos elefantes. E nós não somos japoneses.

Nós somos de uma nação, que tem um povo com trabalhadores, como os cortadores de cana, que tem a vida útil de trabalho de apenas 10 anos (depois de uma década na colheita, para quem não sabe, os cortadores ficam “tortos”, digo, sua coluna vertebral faz uma "curva"). Nós temos um país onde milhões de pessoas, devido a muitos outros subempregos por qual se sujeitam a maior parte de suas vidas, tem a saúde também deteriorada. E essas pessoas por vezes se tornam idosos. E já vi muitos deles, serem abandonados por suas próprias famílias. E mesmo aquelas famílias que cuidam dos seus velhos, cuidam deles com muita dificuldade. Então, o que faremos com essa grande parcela da população?

         Com as palavras de Merhy, comecei a acreditar que mais ainda, como profissional de saúde, devemos defender todo tipo de vida, até mesmo, aquela que já está em seu final. Talvez pensando "poeticamente", às vezes, por exemplo, um momento qualquer “a mais” para a pessoa, pode-se tornar “eterno” para ela... Eu sempre penso nisso.

         Voltando ao caso médica da UTI, relacionando a algo mais geral, mais ordinário, e que se faz tão presente em nossas vidas, e em vários âmbitos: é a coisificação da vida, a coisificação das pessoas, principalmente nesse nosso ritmo econômico de respirar.

         Pelos jornais, ela matou para “liberar” vaga para as pessoas que tinham “convênio”.

         Assim, a vida de uma pessoa não valeu mais, do que o pouco mais “da migalha” que paga o convênio de saúde, em comparação ao SUS.

        

E tudo isso envolto a questão do atual colapso econômico que a maioria das Santas Casas de Misericórdia estão passando. Elas que tiveram um belo, sereno e filantrópico começo, mas que ao longo dos anos, se tornaram uma “grande caixa preta”, e/ou mesmo “caixa dois”. Muitos falam em déficit de financiamento, mas pelo menos regionalmente, é mesmo coisa de se “meter” a mão em dinheiro público, em dinheiro de “promoções beneficentes”.  Fora que essas Organizações Sociais (muitas Santas Casas são geridas pelas tais OS´s), não tem nenhum tipo de capacidade gerencial, ou seja, são totalmente desorganizadas em muito sentidos, ao invés de organizadas.  

         (E tudo isso envolto a uma declaração do Conselho Federal de Medicina que vem ganhando força, exigindo melhores salários para os médicos, como os de juízes. “Nós queremos carreiras como as de juízes”. Para ele, somente o médico ganhando como um juiz, é que fará a distribuição regional desse profissional por habitante melhorar.)

         Uma vez eu escutei uma história, em que uma colega enfermeira, na triagem de uma emergência de saúde pública, se recusou a atender um mendigo, declarando: “não achei meu nariz no lixo”.

        Acredito que diariamente, muitos de nós profissionais de saúde, não atendemos, e nem sequer escutamos determinadas pessoas, com suas queixas e sofrimento, pois temos que seguir o que se chama de “procedimento padrão”.

        Esquecemos que cada caso é um caso, que cada pessoa é única.

         Nós estamos nos tornando objetos, e “tratando” outras pessoas como objetos também.

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