Proletários do giz
Professores não suportam mais as condições que fazem do ensino a trava do IDH brasileiro, diz historiador e acadêmico
03 de agosto de 2013 | 15h 29
Mônica Manir
Quando mestre de literatura no colegial, nos anos 1960 e 70, Alfredo Bosi
oferecia Camões aos alunos. E recebia em troca Gigantes Adamastores empoleirados
nas cadeiras, recitando estrofes completas do poeta português. Era sua voz
contra a "pedagogia da preguiça", que dava o mínimo do mínimo à juventude,
quando ela estava pronta para o máximo.
Nilton Fukuda/Estadão
Troca. O ensino deve oferecer ao aluno o
que ele merece e exigir o que ele pode dar
Professor há quatro décadas na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências
Humanas da Universidade de São Paulo, ele continua num traçado pessoal pela
qualidade do ensino. Daí sua preocupação com o resultado do último Índice de
Desenvolvimento Humano das cidades brasileiras, que aponta a educação como a
bigorna a puxar o índice para baixo.
Não é questão de distribuir kits e comprar mais computadores. Nem de sair às
ruas pedindo Mais Professores, nos moldes do Mais Médicos. Para ele, falta
valorizar econômica, social e culturalmente a profissão que seus alunos da
faculdade não querem mais seguir. "O punctum ainda é o desestímulo sofrido pelo
professor pelo excesso de trabalho, quase sempre em mais de uma escola, e pela
angustiante falta de tempo para preparar as aulas e acompanhar de perto o
aproveitamento dos alunos." Sem retorno, eles preferem trabalhar em empresas,
laboratórios ou em pesquisa avançada. Não aceitam ser proletários do giz e da
lousa. Ou do pincel atômico e do power point, que seja.
Este elegante imortal de 76 anos também refletiu sobre a avaliação dos
alunos, "que passou de um extremo a outro, ambos lastimáveis", e sobre o repasse
dos royalties do petróleo, "que precisa ser administrado à altura das nobres
intenções que o motivaram". Refletir, aliás, é algo que cultiva em toda a sua
carreira de crítico literário, historiador, ensaísta e ponto de resistência
durante a ditadura, quando reunia padres, sindicalistas e intelectuais em sua
casa em Cotia, onde mora. Em setembro ele voltará a matutar em conjunto no
Colégio do Brasil, no Rio de Janeiro. Ali começam as reuniões do Círculo do
Pensamento, bolado por 20 intelectuais - Bosi entre eles - para lutar contra a
"dieta reflexiva de astronauta dos nossos tempos", como afirma o escritor
Eduardo Portella. Dieta rala, modesta, que Alfredo Bosi certamente vai encorpar:
"Ele é um homem de literatura que se distingue pela capacidade de pensar",
finaliza o também professor Portella.
O IDH avançou 47,8% no Brasil. No entanto, a educação ainda é
apontada como um entrave, pois se mantém num degrau médio. Como soltar esse
freio de mão?
Alfredo Bosi-Como professor secundário e universitário que fui durante quatro décadas, pude observar de perto tanto os pontos altos como as carências dessa área capital para o desenvolvimento e qualidade de vida de nosso povo. Os pontos altos encontram-se, em geral, no ensino superior e, mais particularmente, nos cursos de pós-graduação. Quem acompanha a produção em várias áreas de pesquisa dita "de ponta", e o trabalho intenso desenvolvido por agências como Fapesp, CNPq, Finep, não pode deixar de alimentar esperanças em termos de nível intelectual, que, em alguns casos, iguala o de centros universitários de reputação internacional. No entanto, quando voltamos o olhar ao ensino primário e secundário, temos um panorama inquietante em que as exceções, embora honrosas, são ainda poucas.
Alfredo Bosi-Como professor secundário e universitário que fui durante quatro décadas, pude observar de perto tanto os pontos altos como as carências dessa área capital para o desenvolvimento e qualidade de vida de nosso povo. Os pontos altos encontram-se, em geral, no ensino superior e, mais particularmente, nos cursos de pós-graduação. Quem acompanha a produção em várias áreas de pesquisa dita "de ponta", e o trabalho intenso desenvolvido por agências como Fapesp, CNPq, Finep, não pode deixar de alimentar esperanças em termos de nível intelectual, que, em alguns casos, iguala o de centros universitários de reputação internacional. No entanto, quando voltamos o olhar ao ensino primário e secundário, temos um panorama inquietante em que as exceções, embora honrosas, são ainda poucas.
Ao mesmo tempo, a educação foi o indicador que mais teve avanço desde
1991.
Alfredo Bosi-Os índices apontam para um avanço significativo ocorrido nestes primeiros anos do século 21, fato em si mesmo alvissareiro. Houve, de fato, um progresso quantitativo, pois, salvo em alguns bolsões de extrema pobreza, pode-se dizer que quase toda a população em idade escolar está nas salas de aula. Mas também fica evidente que há muito por fazer em termos de qualidade para chegarmos a um patamar suficiente, se comparamos nossa situação com a de outras nações, não só com as desenvolvidas, mas com algumas de economia modesta, como Uruguai, Cuba, Chile e Costa Rica. O crescimento econômico medido em termos de PIB não é garantia de uma política enérgica de educação, para a qual o valor prioritário deve ser a formação intelectual e ética do cidadão.
Alfredo Bosi-Os índices apontam para um avanço significativo ocorrido nestes primeiros anos do século 21, fato em si mesmo alvissareiro. Houve, de fato, um progresso quantitativo, pois, salvo em alguns bolsões de extrema pobreza, pode-se dizer que quase toda a população em idade escolar está nas salas de aula. Mas também fica evidente que há muito por fazer em termos de qualidade para chegarmos a um patamar suficiente, se comparamos nossa situação com a de outras nações, não só com as desenvolvidas, mas com algumas de economia modesta, como Uruguai, Cuba, Chile e Costa Rica. O crescimento econômico medido em termos de PIB não é garantia de uma política enérgica de educação, para a qual o valor prioritário deve ser a formação intelectual e ética do cidadão.
Em que estamos patinando?
Alfredo Bosi-Há muito tempo venho me preocupando com o diagnóstico
dos males de nossa educação fundamental. Em artigos que escrevi para a Folha de
S. Paulo (O Ponto Cego do Ensino Público) e para o Jornal do Brasil (Educação:
as Pessoas e as Coisas), relatei os resultados de uma pesquisa que fiz
registrando os salários dos professores dos cursos básicos em todo o País. Até
os anos 1990, a maioria absoluta dos nossos mestres-escola não ganhava sequer um
salário mínimo mensal. Eram proletários do giz e da lousa, que precisavam dar um
número altíssimo de aulas para receberem um salário que significava então metade
e às vezes um terço do que recebiam os docentes universitários em início de
carreira. Era uma desproporção injusta e lesiva para o professor, para os alunos
e para toda a sociedade brasileira. A pesquisa tocava no ponto cego do nosso
ensino público: a desvalorização econômica, social e cultural do professor como
o fator mais significativo do baixo rendimento do sistema educacional.
O que mudou de lá para cá?
Alfredo Bosi-A política dos poderes estaduais e
municipais, que são os responsáveis pelo ensino básico, continuou subestimando a
questão da valorização efetiva, e não só retórica, do professorado. Atribuiu-se
equivocadamente o insucesso escolar a problemas de saúde do aluno pobre ou à
"carência cultural" de suas famílias. Ou, então, especialistas em pedagogia
davam excessiva importância ao uso deste ou daquele método de alfabetização,
deste ou daquele sistema de ensino de matérias fundamentais como a matemática, a
história, as ciências. Eram fatores relativamente importantes, mas desviavam a
atenção para o que é essencial. O punctum era e ainda é o desestímulo sofrido
pelo professor pelo excesso de trabalho, quase sempre em mais de uma escola, e
pela angustiante falta de tempo para preparar suas aulas e acompanhar de perto o
aproveitamento dos alunos. A distribuição de kits, livros, computadores e
material escolar não deve substituir uma política corajosa de elevação salarial
e valorização social do professor. As coisas por si sós não movem o processo
educacional: o centro vivo são as pessoas, sua vontade cidadã de contribuir para
o desenvolvimento intelectual e moral do jovem aluno.
No molde do ‘Mais Médicos’, a população deveria ir às ruas pedir
‘Mais Professores’?
Alfredo Bosi-Não sei se é o caso de reclamar por
"mais professores", embora me pareça razoável, salvo melhor juízo, que em alguns
municípios carentes se reclame por mais médicos. O fato é que em escolas de
periferia de São Paulo (não conheço a situação de outros Estados) muitas classes
ficam sem docentes de matérias fundamentais como português e matemática, porque
os professores contratados faltam às aulas com uma frequência inquietante.
Pergunto se não é o caso de pesquisar as causas desse comportamento que, de
minha parte, se deveria atribuir ao desânimo de profissionais que ganham mal e
não recebem do Estado o respeito e o estímulo de que necessitam para enfrentar
as dificuldades cotidianas de seu trabalho. Como professor de uma das melhores
faculdades de letras e humanidades do País, verifico que grande parte dos alunos
graduados em matérias humanísticas e literárias não escolhe o magistério
primário e secundário como carreira prioritária, embora tenha recebido formação
específica para exercê-la. Há situações semelhantes entre alunos formados em
matemática, física, química, biologia. Preferem trabalhar em empresas,
laboratórios ou pesquisa avançada e dão as costas para a missão de transmitir
seus conhecimentos em condições que estão aquém de suas expectativas
profissionais. Trata-se de um sintoma de desistência do magistério, que
precisamos interpretar corretamente para passar do diagnóstico à terapia.
Qual é o seu diagnóstico sobre o aprendizado do aluno?
Alfredo Bosi-Do ponto de vista estritamente
pedagógico, a avaliação do aluno passou de um extremo a outro, ambos
lastimáveis. Com a boa intenção de minorar o mal da repetência, endêmico até os
anos 1990, algumas Secretarias de Educação optaram por um sistema de tolerância
máxima pelo qual se evita sistematicamente reprovar todo e qualquer aluno,
aprovando-o "para inglês ver", isto é, para parecer que o ensino foi
bem-sucedido e fazer esse êxito numérico constar das estatísticas escolares. A
situação assemelha-se à triste farsa dos que fingem que ensinam e dos que fingem
que aprendem. Já é consenso lamentar que boa parte dos alunos que chegam ao
último ano do ensino fundamental ainda tenha problemas graves de alfabetização,
leitura, escrita, raciocínio matemático, etc. Parece-me que o bom senso exige
uma revisão de alguns procedimentos automáticos e irresponsáveis desse processo
que está desmoralizando o ensino básico brasileiro. O maior gargalo parece ser o
da passagem do ensino fundamental para o médio. Mas não devemos desanimar, pois
a qualidade da educação pública já foi excelente até os anos 1950, antes da
explosão da sociedade de massas. Se não podemos voltar atrás, pois as condições
objetivas são tão diferentes, devemos pelo menos apostar em estratégias que se
ajustem às necessidades atuais, trabalhando nas duas pontas: valorizando o
professor e oferecendo ao aluno o que ele merece, sem deixar de exigir o que ele
pode dar.
Por que a inclusão social brasileira dos últimos 20 anos não atingiu
a população nesse particular? Ainda vigora entre nós uma cultura escolar
elitista?
Alfredo Bosi-Quando se fala em "cultura escolar
elitista", pensa-se na questão candente da exclusão escolar e cultural. O
remédio proposto ultimamente é o das cotas concedidas a alunos de famílias de
baixa renda, provenientes de escolas públicas, e de preferência não brancos,
negros e índios. A matéria é controversa e não sei se poderia tratá-la nesta
entrevista, na medida em que me faltam dados confiáveis para avaliar o que está
acontecendo e sobretudo o que vai acontecer a partir da concessão obrigatória
das cotas. É sempre problemático querer resolver um mal pelo seu efeito final,
no caso, a dificuldade de um aluno (prejudicado pelas condições acima descritas)
superar a barreira de um vestibular público. O que me parece absolutamente
necessário é dar a todos os alunos do ensino médio condições intelectuais para
concorrerem em qualquer tipo de vestibular. Em outras palavras, enfrentar
corajosamente a situação desfavorável do aluno da escola média pública quando
confrontada com a das escolas particulares escolhidas pela alta classe média. A
revolução educacional tem de começar de baixo para cima. O que é, sem dúvida,
mais difícil e mais demorado do que remediar, pelo alto, uma situação
desequilibrada que vem de longe. Em educação, democracia significa dar igualdade
de oportunidades de conhecimento a todos os cidadãos sem distinção de idade,
cor, gênero, nacionalidade ou renda familiar.
Como resposta às manifestações, a presidente Dilma apontou o uso dos
royalties do petróleo na educação como um dos cinco pactos firmados com
prefeitos e governadores. Esse montante, porém, só estará disponível em 2020. E
questiona-se a forma como será aplicado. A educação já faz parte da agenda
estratégica dos governos? Quero dizer, falta-lhes apenas mais
dinheiro?
Alfredo Bosi-Espero que o grande aporte ao sistema
educacional, proposto pela presidente Dilma, relativo aos royalties do pré-sal,
seja administrado à altura das nobres intenções que o motivaram. E que, na hora
decisiva da distribuição das verbas federais, as redes sociais e o Ministério
Público fiquem atentos aos desvios que tantas vezes os executivos municipais
operam, à socapa, canalizando o dinheiro concedido à educação para a prática do
nepotismo e a construção de obras eleitoreiras. Finalmente, que seja equacionado
com justeza o problema da valorização econômica do professor primário e
secundário.
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