A resistência ao projeto que obrigará os estudantes de medicina a trabalhar dois anos no SUS expõe a fratura social do Brasil
ELIANE BRUM na revista Época
Via:http://www.mariolobato.blogspot.com.br/2013/07/a-resistencia-ao-projeto-que-obrigara.html#more
O programa “Mais Médicos”, lançado pela
presidente Dilma Rousseff, não vai resolver o problema do Sistema Único de Saúde
(SUS). Mas pode, sim, ser parte da solução. Ou alguém realmente acredita que
colocar mais médicos nos lugares carentes do Brasil pode fazer mal para a
população? Sério que, de boa fé, alguém acredita nisso? A veemência dos
protestos contra o projeto de ampliar o curso de medicina de seis para oito anos
e tornar esses dois últimos anos um trabalho remunerado para o SUS revela muito.
Especialmente o quanto é abissal a fratura social no Brasil. E o quanto a parte
mais rica é cega para a possibilidade de fazer a sua parte para diminuir uma
desigualdade que deveria nos envergonhar todos os dias – e que, no caso da
saúde, mata os mais frágeis e os mais pobres.
Para resolver o problema do SUS é
preciso assumir, de fato, o compromisso com a saúde pública gratuita e
universal. O que significa investir muito mais recursos. Em 2011, segundo dados
da Organização Mundial da Saúde (OMS), o Brasil gastou US$ 477 per capita em
saúde. Menos do que vizinhos como Uruguai (US$ 817,8) e Argentina (US$ 869,4),
por exemplo. E quase seis vezes menos do que o Reino Unido (US$ 2.747), cujo
sistema de saúde tem sido apresentado como referência do projeto do governo.
Hoje, falta dinheiro e falta gestão eficiente. Sem dinheiro e sem
eficiência, duas obviedades, não se constrói um sistema decente. Mas, para
investir mais dinheiro no SUS, é preciso tocar também em questões sensíveis,
como o financiamento da saúde privada. Falta dinheiro no SUS também – mas não só
– porque o Estado tem subsidiado a saúde dos mais ricos via renúncia
fiscal.
Um recente estudo do IPEA (leia aqui) mostrou que, em 2011, último ano avaliado, quase R$ 16
bilhões de reais deixaram de ser arrecadados pelo governo, por dedução no
imposto de renda de pessoas físicas e jurídicas e desoneração fiscal da
indústria farmacêutica e de hospitais filantrópicos. O que é, de fato, renúncia
fiscal? Um pagamento feito pelo Estado: ele não desembolsa, mas paga, ao deixar
de receber. Assim, quase R$ 16 bilhões, o equivalente a 22,5% do gasto público
federal em saúde, deixaram de ser investidos no SUS para serem transferidos para
o setor privado, numa espécie de distribuição de renda para o topo da pirâmide.
Para ter uma ideia do impacto, é mais do que os R$ 13 bilhões que o ministro da
Saúde, Alexandre Padilha, afirma que o governo está investindo em unidades
básicas de saúde, pronto-atendimento e hospitais. Não é a toa que, entre 2003 e
2011, o faturamento do mercado dos planos de saúde quase dobrou e o lucro
líquido cresceu mais de duas vezes e meia acima da inflação.
O governo tem estimulado a população –
e também os empregadores – a investir em saúde privada. Um plano de saúde
privado tornou-se uma marca de ascensão social. A “classe C” ou “nova classe
média” tem sido vítima de planos de saúde mequetrefes que, na hora de maior
necessidade, deixam as pessoas desprotegidas. Como muitos já sentiram na pele,
quando a coisa realmente aperta, quando a doença é séria e requer recursos e
intervenções de ponta, quem vai resolver não é a rede privada, mas o SUS, porque
uma parte significativa dos planos não cobre os exames e tratamentos mais caros.
Para que a solução seja estrutural – e
não cosmética – é preciso acabar com as distorções e fortalecer o SUS. Sem
dinheiro, o SUS vai sendo sucateado e se torna o destino apenas dos mais pobres
e com menos instrumentos para reivindicar seus direitos. Assustada com a
precarização do SUS, a classe média se sacrifica para pagar um plano privado,
que tem sempre muitas letras miúdas. Os trabalhadores organizados incluem saúde
privada na pauta sindical, afastando-se da luta do SUS. Quem tem mais poder de
pressão para pressionar o Estado por saúde pública de qualidade, portanto,
encontra saídas individuais – que muitas vezes vão se mostrar pífias na hora da
urgência – ou saídas coletivas, mas para grupos específicos, no caso dos
empregados com planos empresariais.
Enquanto sobrar distorções e faltar
dinheiro, o SUS não vai melhorar. Não vai mesmo. Neste sentido, tem razão quem
afirma que o programa “Mais Médicos” é demagogia. Mas apenas em
parte.
Acrescentar dois anos ao curso de
medicina e tornar esses dois últimos anos um trabalho remunerado no SUS, uma das
mudanças previstas para iniciar em 2015, pode ser um aprendizado. E rico. Não só
da prática médica como da realidade do país e da sua população, o que não pode
fazer mal a alguém que pretenda ser um bom médico. Para que isso funcione, tanto
como formação quanto como atendimento de qualidade à população, é preciso que
exista de fato a supervisão dos professores e das faculdades. E essa é uma boa
causa para as entidades corporativas e para as escolas de medicina.
Hoje, um dos problemas do SUS é a
fragilidade da atenção básica: o que poderia ser resolvido nos postos de saúde
ou pelo médico de família e que consiste em cerca de 90% dos casos acaba indo
sobrecarregar os hospitais, que deveriam ser acionados apenas para os casos mais
graves. A distorção provoca problemas de atendimento de uma ponta a outra do
sistema. Por outro lado, entre os avanços mais significativos do SUS está o
Programa Saúde da Família (PSF), um dos principais responsáveis, junto com o
Bolsa Família, pela redução da mortalidade infantil no país. Mas faltam médicos
para esse programa. A atuação dos estudantes de medicina poderá fazer uma enorme
diferença. E isso não é pouco num país em que os filhos dos pobres ainda morrem
de diarreia e de doenças já erradicadas nos países desenvolvidos.
A obrigatoriedade de trabalhar dois
anos no SUS tem sido considerada por alguns setores, como as entidades
corporativas, uma violação dos direitos individuais do estudante de medicina.
Será que não poderia ser vista, além de um aprendizado, também como uma
contrapartida, especialmente para quem estudou em universidades públicas ou foi
beneficiado com bolsas do Prouni? O Estado, o que equivale a dizer toda a
população brasileira, incluindo os que hoje não têm acesso à saúde pela
precariedade do SUS, financia os estudos desses estudantes. Não seria lógico e
mesmo ético que, ao final do curso, os estudantes devolvessem uma mínima parte
desse investimento à sociedade? Para os estudantes das escolas privadas, o
projeto prevê a liberação do pagamento das mensalidades nestes dois últimos
anos. Mas sempre vale a pena lembrar que também há financiamento público das
particulares, na forma de uma série de mecanismos, como renúncia fiscal para as
filantrópicas e para as que aderiram ao Prouni.
Os estudantes de medicina serão
remunerados pelo trabalho e pelo aprendizado. O valor mensal da bolsa ainda não
está definido, mas a imprensa divulgou que será algo entre R$ 3 mil e R$ 8 mil.
Ainda que seja o menor valor, que outra categoria no Brasil pode sonhar em
ganhar isso antes mesmo de se formar? E mesmo depois de formado? Por que, então,
uma resistência tão grande?
Por causa do abismo. A maioria dos
estudantes de medicina vem das classes mais abastadas, como mostrou a Folha de
S. Paulo de 13/7: na Unesp (Universidade Estadual Paulista), apenas 2% cursaram
colégio público, contra 40% no geral; na USP (Universidade de São Paulo), 20%
dos estudantes têm renda familiar superior a R$ 20 mil, não há negros na turma
que ingressou em 2013. Historicamente, a elite brasileira não se vê como parte
da construção de um país mais igualitário. Pelos motivos óbvios – e porque está
acostumada a receber, não a dar. Assim, ter seus estudos financiados pelo
conjunto da população brasileira é interpretado como parte dos seus direitos –
não como algo que pressupõe também um dever ou uma contrapartida. Dever e
contrapartida, como se sabe, são para os outros.
Não fosse esse olhar sobre si e sobre
seu lugar no país, seria plausível que trabalhar os dois últimos anos do curso
no SUS pudesse ser uma boa notícia para quem escolheu ser médico. Fosse até
desejável. Primeiro, porque está ajudando a levar saúde a uma população que não
tem. E, neste sentido, pode fazer a diferença, algumas vezes entre viver e
morrer. Segundo, por participar da construção de um país mais justo, o que
implica deveres ainda maiores a quem recebeu mais. Receber mais – melhores
escolas, melhor saúde, melhores oportunidades – não significa que tenha de
continuar recebendo mais, mas que precisa dar mais, já que a responsabilidade
com quem recebeu menos se torna ainda maior. Terceiro, porque é inestimável a
oportunidade de conhecer as dores, as necessidades e as aspirações das porções
mais carentes do Brasil, não só pelo aprendizado médico em si, mas pelo que essa
população pode ensinar sobre um outro viver.
Tornar-se médico – e não apenas um
técnico em medicina – não passa pela capacidade de escutar o outro como alguém
que tem algo a dizer não apenas sobre seus sintomas, mas sobre uma visão de
mundo singular e uma interpretação complexa da vida?
Ao ler a maioria das críticas sobre o
programa, o que chama a atenção é a impossibilidade de seus autores se verem
como parte da construção de um SUS mais forte e eficiente, o que significa ser
parte da construção de um Brasil melhor para todos – e não só para uma minoria.
No geral, o que se revela nitidamente é um olhar de fora, como se tudo tivesse
que estar pronto, em perfeitas condições, para que só então o médico atuasse.
Mas é no embate cotidiano, no reconhecimento das carências e na pressão por
mudanças que o SUS será fortalecido, como tem mostrado em sua prática uma
parcela dos médicos tachada – às vezes pejorativamente – como idealista. Nesse
sentido, também os estudantes de medicina e seus professores farão uma enorme
diferença ao estar no palco onde esse embate é travado. Ao estar presentes –
promovendo saúde, denunciando distorções e pressionando por qualidade – mais do
que hoje.
Acredito que a vida da maioria só muda
quando os Brasis se aproximam e se misturam. Tenho esperança de que esse
programa – se bem executado, o que só pode acontecer com a adesão e o
compromisso de todos os envolvidos – possa ser inscrito nesse gesto. O conjunto
de medidas do “Mais médicos”, que inclui também a atuação de profissionais
estrangeiros em áreas carentes, já promoveu pelo menos um impacto positivo:
colocou o SUS no centro da pauta nacional. Seria tão importante que os
protagonistas desse debate superassem a polarização inicial entre governo e
entidades médicas para fazer uma discussão séria, com a participação da
população, que pudesse resultar no acesso real da maioria a um sistema de saúde
com qualidade. E seria uma pena que essa oportunidade fosse perdida por
interesses imediatos e menos nobres, tanto de um lado quanto de
outro.
É grande o debate sobre se faltam
profissionais ou se eles estão mal distribuídos. O que me parece é que não
faltam doutores no Brasil – o que falta são médicos. São muitos os doutores que
ainda nem sequer se formaram, mas já assumiram o título e o encarnam num sentido
profundo. O SUS terá mais chance quando existirem menos doutores e mais médicos
trilhando o mapa do Brasil.
(Eliane Brum escreve às
segundas-feiras.)
Nenhum comentário:
Postar um comentário