Ainda em choque com a
situação, deixo aqui pequenas centelhas de luz no lusco fusco dos fatos, pois
clarear as coisas no todo não me cabe, nem tampouco sou eu digno da altivez
daquela gente para estar aqui, em nome deles, falando com maior exatidão
qualquer coisa. Posso no entanto contar algo porque eu estava lá no acampamento,
com as crianças da Escola Itinerante do MST, produzindo um documentário do qual
estão participando escolas de diversos contextos socioeconômicos. Comigo, estava
também a equipe de gravação. Não temos imagens da tragédia. Não estávamos no
local em que tudo aconteceu, mas pude conversar com os feridos na sequência do
ocorrido e ver as condições em que se encontrava a caminhonete deles,
completamente alvejada por balas.
Quero dizer antes de
mais nada que tenho um amor aqui dentro me estrangulando, querendo sair. Se para
alguns a exacerbação dos ânimos culmina em ódio, comigo ocorre algo na direção
contrária. É o amor que me exacerba os âmagos e me tira o sono.
Preciso dizer também
que tenho uma obsessão pelo diálogo. Às vezes alguém me avista lá em cima do
muro, o grande muro que separa pessoas. O muro representa a falta de habilidade
de irmos ao encontro do outro pra dialogar. Quando perdemos esta condição de
superar o muro e ir na direção do outro para compreendê-lo, é porque já estamos
decididos a nos separar dos outros. No meu caso, não sei se por sanidade, ou se
por demência, o outro gera fascínio.
Eu acho mesmo que
peguei o jeito de escalar o grande muro que separa pessoas. Eu vivo subindo lá.
Eu preciso sempre ver o que há do outro lado. Se estou aqui, me pergunto sobre
como é o outro lado, e pra lá eu vou. Por isso, estou sempre passando ali por
cima do grande muro, de lá pra cá, daqui pra lá, pra poder acessar o outro lado.
E as pessoas, às vezes, me avistam bem no momento em que estou lá em cima, que é
onde a gente se torna mais visível.
Mas não dá pra saber
direito o que existe no além-muro sem superá-lo, sem ir ao encontro do outro. E
não adianta você apontar o dedo e me dizer o que tem lá. Eu tenho que descer e
chegar perto. Eu prefiro mesmo estar em constante movimento. Eu escalo o muro,
avisto o outro lado, mas não consigo ficar lá em cima apenas observando. Eu
tenho uma ânsia de ir na direção das pessoas para conhecê-las.
E quando já lá do
outro lado estou, circulando, conhecendo, trocando, não sinto necessidade de
cravar os pés ali, travando meu movimento. Pelo contrário, o desejo de
compartilhar as novas referências ali colhidas, as descobertas, me impulsiona
ainda mais o movimento. Ficar travado em um dos lados me esvaziaria o amor,
porque o amor que aprendi a cultivar só pode ser abastecido diante da descoberta
da diferença. É a compreensão da diferença que, no meu caso, produz
amor.
Entendo que, em
situações limite, essa escalada a que simbolicamente me refiro, esse movimento
de superar o muro, torna-se cada vez mais difícil. Pedras grandes e pontudas
voam por cima do grande muro que separa pessoas, porque um lado está tentando
acabar com o outro. E se você vai passar ali por cima, uma das pedras vem e te
arregaça. Aí você cai de lá de cima. E, por nunca ter cravado o pé daquele lado
em que você caiu, agora pode ser que ninguém mais te reconheça ali.
Bem, dito isso,
menciono a seguir impressões sobre o que eu e a equipe do documentário
vivenciamos em Quedas do Iguaçu, na cidade e no acampamento Dom Tomás Balduíno,
onde há cerca de um ano vivem 1.500 famílias de trabalhadores e trabalhadoras
rurais, com suas crianças, com seus bebês, com seus sonhos de melhoria das
condições precárias de vida nas quais, muitos ali, sempre
estiveram.
- Conforme relato dos
cerca de 25 homens e mulheres que estavam presentes no local da tragédia, não
houve um confronto, mas sim uma ação violenta contra eles e a consequente
tentativa de fuga dos trabalhadores. Na versão da polícia, que é a que predomina
nos noticiários e cai no gosto popular, os trabalhadores sem terra fizeram uma
emboscada. Quem faz a emboscada atira, ataca, certo? E quem sofre a emboscada é
atacado, sim? Os tiros, se não matam, deixam muitas evidências, ainda mais
envolvendo tanta gente. No entanto, não temos notícias de policiais ou
seguranças da Araupel feridos ou mortos, nem marcas de bala em viaturas da
polícia. Os feridos e mortos foram os trabalhadores rurais. Vi os feridos sendo
trazidos de volta para o acampamento, com tiros nas costas. Os tiros foram nas
costas, na parte de trás da perna, nas nádegas, etc, porque eles corriam
enquanto estavam sendo baleados. Vi a caminhonete que os carregava, toda
perfurada com buracos de bala. Não há como precisar exatamente como as coisas se
deram lá, mas uma coisa é certa, a ideia de que foi uma emboscada feita pelos
sem terra não se sustenta, não condiz com o que pude ver lá.
- O tal apagar do
incêndio, razão pela qual a polícia e os seguranças da Araupel teriam entrado na
área deste acampamento, está sendo amplamente questionado pelos trabalhadores.
Eles suspeitam tratar-se de uma armadilha que os atrairia pra lá. No momento em
que por lá passaram, foram surpreendidos pela polícia entrincheirada, que não
estabeleceu nenhum tipo de diálogo com o grupo, e avançou atirando, conforme me
relataram alguns trabalhadores que conseguiram escapar.
Algumas informações
obtidas na cidade podem também ajudar a pensar o caso.
- Havia um grande
número de policiais na cidade nos últimos dias. Os hotéis estavam lotados.
Muitas viaturas da Rotam - PR circulavam pela cidade. Não tenho informações
amplas sobre as razões de tamanha mobilização do efetivo estadual nessa pequena
e pacata cidade. Mas ela coincide com uma série de outros procedimentos do
governo estadual no sentido de reunir força policial na região, como a nomeação
do novos secretário de segurança e a saída recente da Força Nacional de
Segurança que lá estava a pedido do governador.
- Consegui no mesmo
dia da tragédia conversar com policiais no centro da cidade, em frente ao
hospital que socorria os feridos. Eles não tinham como passar muitas informações
sobre o ocorrido, mas não puderam esconder em suas expressões a perplexidade, a
incerteza, talvez até o medo. Muitos deles, assim como muitos de nós, não
encontraram em suas histórias de vida condições suficientes de reflexividade
para que pudessem, por si mesmos, compreender quem são os trabalhadores sem
terra, como se organizam no cotidiano e como cultivam valores fundamentais de
socialidade. Não tenho dúvidas de que estes homens policiais, também pais de
família e trabalhadores, são também, de algum modo, vítimas de uma estrutura
maior, política, econômica, que nos recobre de tal modo, que nem mesmo
conseguimos senti-la, quanto mais compreendê-la.
- Os pais de algumas
crianças da Escola comentaram que, nas últimas duas semanas, estavam evitando ir
à cidade, pois com a saída da Força de Segurança Nacional, as abordagens
policiais se intensificaram e muitos jovens trabalhadores estavam sendo
agredidos e humilhados nas revistas feitas pela polícia militar do Estado do
Paraná.
- Pude notar surpreso
que a presença da polícia na cidade estava desencadeando um incomodo nos
moradores de Quedas do Iguaçu que, não de forma unânime, vêm com bons olhos os
trabalhadores sem terra. Conversei com comerciantes e empresários da região
central da cidade durante os dias que passamos lá. Me surpreendeu a ampla
aceitação e o bom convívio que se dá entre eles e os acampados. Por mais
precária que seja a condição econômica dos acampados, a presença deles gera
aquecimento da economia local. Perguntei se havia muitos assaltos na região e me
disseram que sempre houveram situações de criminalidade na cidade, mesmo antes
da chegada do MST. Com a chegada deles, não houve aumento da criminalidade. O
fato é que, do ponto de vista de muitos comerciantes, é notável a diferença
entre o antes e o depois. A expectativa pela desapropriação e concessão das
terras é grande, pois toda renda gerada com o uso daquelas terras ficará na
cidade, fortalecendo a economia local, o que pode gerar benefícios de toda ordem
pra comunidade.
- Ouvi também
depoimentos que invertem a velha lógica da exclusão sistemática dos mais
vulneráveis pelos mais favorecidos economicamente, como o que me relatou um
morador, em frente ao hospital que recebia os feridos. Eu me aproximei dele e
puxei conversa. Talvez pelo fato dele estar muito bem vestido e ter saído de um
carro de alto valor financeiro, supus que ouviria dele uma versão daquelas que
imediatamente criminaliza e condena os mais fracos. Engano. Pude ouvir ele me
dizer que a culpa não foi dos policiais, não foi dos trabalhadores, mas da
Secretaria de Segurança do Estado, que decidiu colocar à disposição da Araupel
um grande efetivo policial, porque o novo Secretário de Segurança foi eleito
deputado nas últimas eleições com recurso doado pela Araupel. Dizia ele também
que o secretário de segurança do estado foi nomeado com a tarefa de resolver a
questão agrária em Quedas do Iguaçu.
Parece óbvio o que
vou dizer, parece mesmo simples de compreender, chega a ser meio infantil
afirmar isso... Mas não é! Não está ao alcance de muita gente grande a
compreensão de que a questão agrária em Quedas do Iguaçu, ou em qualquer outro
lugar do mundo, jamais poderá ser resolvida por uma Secretaria de Segurança ou
por uma força policial. Pelo contrário, o uso das forças repressivas e da
violência tendem a intensificar a problemática agrária, amplificando os
conflitos e aumentando significativamente a criminalidade a curto e longo
prazo.
Eu aqui escrevendo,
mas nada me alivia. As palavras esfriam na mesma hora que vão pro texto.
Permanece aquecida, em brasa, nas vísceras, a dor de ter presenciado a perda, a
morte de inocentes.
Passa como um
tormento em minha cabeça a imagem da tristeza de uma das esposas, agora viúva,
ao ver a caminhonete chegando alvejada de balas, retirar de dentro da cabine o
boné de seu companheiro, apertá-lo contra o peito, cair de joelhos no
chão.
Em meio ao desespero
que se espalhou no acampamento, um menino que tinha acabado de gravar conosco,
me abraçou, chorou e disse: Tio, eles mataram nós, eles mataram
nós...
As pedras estão nesse
momento voando de um lado ao outro. Eu fui atingido nas pernas e confesso que
pensei que não caminharia mais. Mas a escalada do muro me inspira. Mesmo
mancando, eu vou continuar escalando. Eu vou transcender o muro. Eu vou
continuar levando comigo cada vez mais gente nesta travessia para os outros
lados, para o encontro com o diferente, até que possamos usar novamente as
pedras que hoje machucam para adornar essa grande terra que nos
une.