Por Eliane Brum da Revista Época
Ao conviver com os bem mais jovens, com aqueles que se tornaram adultos
há pouco e com aqueles que estão tateando para virar gente grande, percebo que
estamos diante da geração mais preparada – e, ao mesmo tempo, da mais
despreparada. Preparada do ponto de vista das habilidades, despreparada porque
não sabe lidar com frustrações. Preparada porque é capaz de usar as ferramentas
da tecnologia, despreparada porque despreza o esforço. Preparada porque conhece
o mundo em viagens protegidas, despreparada porque desconhece a fragilidade da
matéria da vida. E por tudo isso sofre, sofre muito, porque foi ensinada a
acreditar que nasceu com o patrimônio da felicidade. E não foi ensinada a criar
a partir da dor.
Há uma geração de classe média que
estudou em bons colégios, é fluente em outras línguas, viajou para o exterior e
teve acesso à cultura e à tecnologia. Uma geração que teve muito mais do que
seus pais. Ao mesmo tempo, cresceu com a ilusão de que a vida é fácil. Ou que
já nascem prontos – bastaria apenas que o mundo reconhecesse a sua genialidade.
Tenho me deparado com jovens que
esperam ter no mercado de trabalho uma continuação de suas casas – onde o chefe
seria um pai ou uma mãe complacente, que tudo concede. Foram ensinados a pensar
que merecem, seja lá o que for que queiram. E quando isso não acontece – porque
obviamente não acontece – sentem-se traídos, revoltam-se com a “injustiça” e
boa parte se emburra e desiste.
Como esses estreantes na vida adulta
foram crianças e adolescentes que ganharam tudo, sem ter de lutar por quase
nada de relevante, desconhecem que a vida é construção – e para conquistar um
espaço no mundo é preciso ralar muito. Com ética e honestidade – e não a
cotoveladas ou aos gritos. Como seus pais não conseguiram dizer, é o mundo que
anuncia a eles uma nova não lá muito animadora: viver é para os insistentes.
Por que boa parte dessa nova geração é
assim? Penso que este é um questionamento importante para quem está educando
uma criança ou um adolescente hoje. Nossa época tem sido marcada pela ilusão de
que a felicidade é uma espécie de direito. E tenho testemunhado a angústia de
muitos pais para garantir que os filhos sejam “felizes”. Pais que fazem
malabarismos para dar tudo aos filhos e protegê-los de todos os perrengues –
sem esperar nenhuma responsabilização nem reciprocidade.
É como se os filhos nascessem e
imediatamente os pais já se tornassem devedores. Para estes, frustrar os filhos
é sinônimo de fracasso pessoal. Mas é possível uma vida sem frustrações? Não é
importante que os filhos compreendam como parte do processo educativo duas
premissas básicas do viver, a frustração e o esforço? Ou a falta e a busca,
duas faces de um mesmo movimento? Existe alguém que viva sem se confrontar dia
após dia com os limites tanto de sua condição humana como de suas capacidades
individuais?
Nossa classe média parece desprezar o
esforço. Prefere a genialidade. O valor está no dom, naquilo que já nasce
pronto. Dizer que “fulano é esforçado” é quase uma ofensa. Ter de dar duro para
conquistar algo parece já vir assinalado com o carimbo de perdedor. Bacana é o
cara que não estudou, passou a noite na balada e foi aprovado no vestibular de
Medicina. Este atesta a excelência dos genes de seus pais. Esforçar-se é, no
máximo, coisa para os filhos da classe C, que ainda precisam assegurar seu
lugar no país.
Da mesma forma que supostamente seria
possível construir um lugar sem esforço, existe a crença não menos fantasiosa
de que é possível viver sem sofrer. De que as dores inerentes a toda vida são
uma anomalia e, como percebo em muitos jovens, uma espécie de traição ao futuro
que deveria estar garantido. Pais e filhos têm pagado caro pela crença de que a
felicidade é um direito. E a frustração um fracasso. Talvez aí esteja uma pista
para compreender a geração do “eu mereço”.
Basta andar por esse mundo para
testemunhar o rosto de espanto e de mágoa de jovens ao descobrir que a vida não
é como os pais tinham lhes prometido. Expressão que logo muda para o
emburramento. E o pior é que sofrem terrivelmente. Porque possuem muitas
habilidades e ferramentas, mas não têm o menor preparo para lidar com a dor e
as decepções. Nem imaginam que viver é também ter de aceitar limitações – e que
ninguém, por mais brilhante que seja, consegue tudo o que quer.
A questão, como poderia formular o
filósofo Garrincha, é: “Estes pais e estes filhos combinaram com a vida que
seria fácil”? É no passar dos dias que a conta não fecha e o projeto construído
sobre fumaça desaparece deixando nenhum chão. Ninguém descobre que viver é
complicado quando cresce ou deveria crescer – este momento é apenas quando a
condição humana, frágil e falha, começa a se explicitar no confronto com os
muros da realidade. Desde sempre sofremos. E mais vamos sofrer se não temos
espaço nem mesmo para falar da tristeza e da confusão.
Me parece que é isso que tem acontecido
em muitas famílias por aí: se a felicidade é um imperativo, o item principal do
pacote completo que os pais supostamente teriam de garantir aos filhos para
serem considerados bem sucedidos, como falar de dor, de medo e da sensação de
se sentir desencaixado? Não há espaço para nada que seja da vida, que pertença
aos espasmos de crescer duvidando de seu lugar no mundo, porque isso seria um
reconhecimento da falência do projeto familiar construído sobre a ilusão da
felicidade e da completude.
Quando o que não pode ser dito vira
sintoma – já que ninguém está disposto a escutar, porque escutar significaria
rever escolhas e reconhecer equívocos – o mais fácil é calar. E não por acaso
se cala com medicamentos e cada vez mais cedo o desconforto de crianças que não
se comportam segundo o manual. Assim, a família pode tocar o cotidiano sem que
ninguém precise olhar de verdade para ninguém dentro de casa.
Se os filhos têm o direito de ser
felizes simplesmente porque existem – e aos pais caberia garantir esse direito
– que tipo de relação pais e filhos podem ter? Como seria possível estabelecer
um vínculo genuíno se o sofrimento, o medo e as dúvidas estão previamente fora
dele? Se a relação está construída sobre uma ilusão, só é possível fingir.
Aos filhos cabe fingir felicidade – e,
como não conseguem, passam a exigir cada vez mais de tudo, especialmente coisas
materiais, já que estas são as mais fáceis de alcançar – e aos pais cabe fingir
ter a possibilidade de garantir a felicidade, o que sabem intimamente que é uma
mentira porque a sentem na própria pele dia após dia. É pelos objetos de
consumo que a novela familiar tem se desenrolado, onde os pais fazem de conta
que dão o que ninguém pode dar, e os filhos simulam receber o que só eles podem
buscar. E por isso logo é preciso criar uma nova demanda para manter o jogo
funcionando.
O resultado disso é pais e filhos
angustiados, que vão conviver uma vida inteira, mas se desconhecem. E,
portanto, estão perdendo uma grande chance. Todos sofrem muito nesse teatro de
desencontros anunciados. E mais sofrem porque precisam fingir que existe uma
vida em que se pode tudo. E acreditar que se pode tudo é o atalho mais rápido
para alcançar não a frustração que move, mas aquela que paralisa.
Quando converso com esses jovens no
parapeito da vida adulta, com suas imensas possibilidades e riscos tão
grandiosos quanto, percebo que precisam muito de realidade. Com tudo o que a
realidade é. Sim, assumir a narrativa da própria vida é para quem tem coragem.
Não é complicado porque você vai ter competidores com habilidades iguais ou
superiores a sua, mas porque se tornar aquilo que se é, buscar a própria voz, é
escolher um percurso pontilhado de desvios e sem nenhuma certeza de chegada. É
viver com dúvidas e ter de responder pelas próprias escolhas. Mas é nesse
movimento que a gente vira gente grande.
Seria muito bacana que os pais de hoje
entendessem que tão importante quanto uma boa escola ou um curso de línguas ou
um Ipad é dizer de vez em quando: “Te vira, meu filho. Você sempre poderá
contar comigo, mas essa briga é tua”. Assim como sentar para jantar e falar da
vida como ela é: “Olha, meu dia foi difícil” ou “Estou com dúvidas, estou com
medo, estou confuso” ou “Não sei o que fazer, mas estou tentando descobrir”.
Porque fingir que está tudo bem e que tudo pode significa dizer ao seu filho
que você não confia nele nem o respeita, já que o trata como um imbecil,
incapaz de compreender a matéria da existência. É tão ruim quanto ligar a TV em
volume alto o suficiente para que nada que ameace o frágil equilíbrio doméstico
possa ser dito.
Agora, se os pais mentiram que a
felicidade é um direito e seu filho merece tudo simplesmente por existir,
paciência. De nada vai adiantar choramingar ou emburrar ao descobrir que vai
ter de conquistar seu espaço no mundo sem nenhuma garantia. O melhor a fazer é
ter a coragem de escolher. Seja a escolha de lutar pelo seu desejo – ou para
descobri-lo –, seja a de abrir mão dele. E não culpar ninguém porque
eventualmente não deu certo, porque com certeza vai dar errado muitas vezes. Ou
transferir para o outro a responsabilidade pela sua desistência.
Crescer é compreender que o fato de a
vida ser falta não a torna menor. Sim, a vida é insuficiente. Mas é o que
temos. E é melhor não perder tempo se sentindo injustiçado porque um dia ela
acaba.
(Eliane Brum escreve às
segundas-feiras na Revista Época.)
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