Dejours denuncia até um treinamento para executivos que aconteceu na França, onde o participante deveria matar um gato o mais friamente possível. Impressionante.
Mestre Dejours.
“Um suicídio no
trabalho é uma mensagem brutal”
Entrevista a
Christophe de Dejours
Ana Gerschenfeld
Nos últimos anos,
três ferramentas de gestão estiveram na base de uma transformação radical da
maneira como trabalhamos: a avaliação individual do desempenho, a exigência de
“qualidade total” e o outsourcing. O fenómeno gerou doenças mentais ligadas ao
trabalho. Christophe Dejours, especialista na matéria, desmonta a espiral de
solidão e de desespero que pode levar ao suicídio.
Psiquiatra,
psicanalista e professor no Conservatoire National des Arts et Métiers, em
Paris, Christophe Dejours dirige ali o Laboratório de Psicologia do Trabalho e
da Acção – uma das raras equipas no mundo que estuda a relação entre trabalho e
doença mental. Esteve há dias em Lisboa, onde, de gravata amarela, cabeleira “à
Beethoven” e olhos risonhos a espreitar por detrás de pequenos óculos de massa
redondos, falou do sofrimento no trabalho. Não apenas do sofrimento enquanto
gerador de patologias mentais ou de esgotamentos, mas sobretudo enquanto base
para a realização pessoal. Não há “trabalho vivo” sem sofrimento, sem afecto,
sem envolvimento pessoal, explicou. É o sofrimento que mobiliza a inteligência
e guia a intuição no trabalho, que permite chegar à solução que se procura.
Claro que no outro
extremo da escala, nas condições de injustiça ou de assédio que hoje em dia se
vivem por vezes nas empresas, há um tipo de sofrimento no trabalho que conduz
ao isolamento, ao desespero, à depressão. No seu último livro, publicado há uns
meses em França e intitulado Suicide et Travail: Que Faire? , Dejours aborda
especificamente a questão do suicídio no trabalho, que se tornou muito
mediática com a vaga de suicídios que se verificou recentemente na France
Télécom.
Depois da
conferência, o médico e cientista falou com o P2 sobre as causas laborais
desses gestos extremos, trágicos e irreversíveis. Mais geralmente, explicou-nos
como a destruição pelos gestores dos elos sociais no trabalho nos fragiliza a
todos perante a doença mental.
O SUICÍDIO
LIGADO AO TRABALHO É UM FENÓMENO NOVO?
O que é muito novo é
a emergência de suicídios e de tentativas de suicídio no próprio local de
trabalho. Apareceu em França há apenas 12, 13 anos. E não só em França – as primeiras
investigações foram feitas na Bélgica, nas linhas de montagem de automóveis
alemães. É um fenómeno que atinge todos os países ocidentais. O facto de as
pessoas irem suicidar-se no local de trabalho tem obviamente um significado. É
uma mensagem extremamente brutal, a pior do que se possa imaginar – mas não é
uma chantagem, porque essas pessoas não ganham nada com o seu suicídio. É
dirigida à comunidade de trabalho, aos colegas, ao chefe, aos subalternos, à
empresa. Toda a questão reside em descodificar essa mensagem.
AFECTA CERTAS
CATEGORIAS DE TRABALHADORES MAIS DO QUE OUTRAS?
Na minha
experiência, há suicídios em todas as categorias – nas linhas de montagem,
entre os quadros superiores das telecomunicações, entre os bancários, nos
trabalhadores dos serviços, nas actividades industriais, na agricultura.
No passado, não
havia suicídios ligados ao trabalho na indústria. Eram os agricultores que se
suicidavam por causa do trabalho – os assalariados agrícolas e os pequenos
proprietários cuja actividade tinha sido destruída pela concorrência das
grandes explorações. Ainda há suicídios no mundo agrícola.
O QUE É QUE
MUDOU NAS EMPRESAS?
A organização do
trabalho. Para nós, clínicos, o que mudou foram principalmente três coisas: a
introdução de novos métodos de avaliação do trabalho, em particular a avaliação
individual do desempenho; a introdução de técnicas ligadas à chamada “qualidade
total”; e o outsourcing, que tornou o trabalho mais precário.
A avaliação
individual é uma técnica extremamente poderosa que modificou totalmente o mundo
do trabalho, porque pôs em concorrência os serviços, as empresas, as sucursais
– e também os indivíduos. E se estiver associada quer a prémios ou promoções,
quer a ameaças em relação à manutenção do emprego, isso gera o medo. E como as
pessoas estão agora a competir entre elas, o êxito dos colegas constitui uma
ameaça, altera profundamente as relações no trabalho: “O que quero é que os
outros não consigam fazer bem o seu trabalho.”
Muito rapidamente,
as pessoas aprendem a sonegar informação, a fazer circular boatos e, aos
poucos, todos os elos que existiam até aí – a atenção aos outros, a
consideração, a ajuda mútua – acabam por ser destruídos. As pessoas já não se
falam, já não olham umas para as outras. E quando uma delas é vítima de uma
injustiça, quando é escolhida como alvo de um assédio, ninguém se mexe…
MAS
O ASSÉDIO NO TRABALHO É NOVO?
Não,
mas a diferença é que, antes, as pessoas não adoeciam. O que mudou não foi o
assédio, o que mudou é que as solidariedades desapareceram. Quando alguém era
assediado, beneficiava do olhar dos outros, da ajuda dos outros, ou
simplesmente do testemunho dos outros. Agora estão sós perante o assediador – é
isso que é particularmente difícil de suportar. O mais difícil em tudo isto não
é o facto de ser assediado, mas o facto de viver uma traição – a traição dos
outros. Descobrimos de repente que as pessoas com quem trabalhamos há anos são
cobardes, que se recusam a testemunhar, que nos evitam, que não querem falar
connosco. Aí é que se torna difícil sair do poço, sobretudo para os que gostam
do seu trabalho, para os mais envolvidos profissionalmente. Muitas vezes, a
empresa pediu-lhes sacrifícios importantes, em termos de sobrecarga de
trabalho, de ritmo de trabalho, de objectivos a atingir. E até lhes pode ter
pedido (o que é algo de relativamente novo) para fazerem coisas que vão contra
a sua ética de trabalho, que moralmente desaprovam.
QUAL
É O PERFIL DAS PESSOAS QUE SÃO ALVO DE ASSÉDIO?
São
justamente pessoas que acreditam no seu trabalho, que estão envolvidas e que,
quando começam a ser censuradas de forma injusta, são muito vulneráveis. Por
outro lado, são frequentemente pessoas muito honestas e algo ingénuas.
Portanto, quando lhes pedem coisas que vão contra as regras da profissão,
contra a lei e os regulamentos, contra o código do trabalho, recusam-se a
fazê-las. Por exemplo, recusam-se a assinar um balanço contabilista manipulado.
E em vez de ficarem caladas, dizem-no bem alto. Os colegas não dizem nada, já
perceberam há muito tempo como as coisas funcionam na empresa, já há muito que
desviaram o olhar. Toda a gente é cúmplice. Mas o tipo empenhado, honesto e
algo ingénuo continua a falar. Não devia ter insistido. E como falou à frente
de todos, torna-se um alvo. O chefe vai mostrar a todos quão impensável é dizer
abertamente coisas que não devem aparecer nos relatórios de actividade.
Um
único caso de assédio tem um efeito extremamente potente sobre toda a
comunidade de uma empresa. Uma
mulher está a ser
assediada e vai ser destruída, uma situação de uma total injustiça; ninguém se
mexe, mas todos ficam ainda com mais medo do que antes. O medo instala-se. Com
um único assédio, consegue-se dominar o colectivo de trabalho todo. Por isso, é
importante, ao contrário do que se diz, que o assédio seja bem visível para
todos. Há técnicas que são ensinadas, que fazem parte da formação em matéria de
assédio, com psicólogos a fazer essa formação.
UMA FORMAÇÃO
PARA O ASSÉDIO?
Exactamente. Há estágios
para aprenderem essas técnicas. Posso contar, por exemplo, o caso de um estágio
de formação em França em que, no início, cada um dos 15 participantes, todos
eles quadros superiores, recebeu um gatinho. O estágio durou uma semana e,
durante essa semana, cada participante tinha de tomar conta do seu gatinho.
Como é óbvio, as pessoas afeiçoaram-se ao seu gato, cada um falava do seu gato
durante as reuniões, etc.. E, no fim do estágio, o director do estágio deu a
todos a ordem de… matar o seu gato.
ESTÁ A DESCREVER
UM CENÁRIO TOTALMENTE NAZI...
Só que aqui ninguém
estava a apontar uma espingarda à cabeça de ninguém para o obrigar a matar o
gato. Seja como for, um dos participantes, uma mulher, adoeceu. Teve uma
descompensação aguda e eu tive de tratá-la – foi assim que soube do caso. Mas
os outros 14 mataram os seus gatos. O estágio era para aprender a ser
impiedoso, uma aprendizagem do assédio.
Penso que há
bastantes empresas que recorrem a este tipo de formação – muitas empresas cujos
quadros, responsáveis de recursos humanos, etc., são ensinados a comportar-se
dessa maneira.
VOLTANDO AO
PERFIL DO ASSEDIADO, É PERIGOSO ACREDITAR REALMENTE NO SEU TRABALHO?
É. O que vemos é
que, hoje em dia, envolver-se demasiado no seu trabalho representa um
verdadeiro perigo. Mas, ao mesmo tempo, não pode haver inteligência no trabalho
sem envolvimento pessoal – sem um envolvimento total.
Isso gera, aliás, um
dilema terrível, nomeadamente em relação aos nossos filhos. As pessoas
suicidam-se no trabalho, portanto não podemos dizer aos nossos filhos, como os
nossos pais nos disseram a nós, que é graças ao trabalho que nos podemos
emancipar e realizar-nos pessoalmente. Hoje, vemo-nos obrigados a dizer aos
nossos filhos que é preciso trabalhar, mas não muito. É uma mensagem totalmente
contraditória.
E OS
SINDICATOS?
Penso que os
sindicatos foram em parte destruídos pela evolução da organização do trabalho.
Não se opuseram à introdução dos novos métodos de avaliação. Mesmo os
trabalhadores sindicalizados viram-se presos numa dinâmica em que aceitaram
compromissos com a direcção. Em França, a sindicalização diminuiu imenso – as
pessoas já não acreditam nos sindicatos porque conhecem as suas práticas
desleais.
COMO
DISTINGUIR UM SUICÍDIO LIGADO AO TRABALHO DE UM SUICÍDIO DEVIDO A OUTRAS
CAUSAS?
É
uma pergunta à qual nem sempre é possível responder. Hoje em dia, não somos
capazes de esclarecer todos os suicídios no trabalho. Mas há casos em que é
indiscutível que o que está em causa é o trabalho. Quando as pessoas se matam
no local de trabalho, não há dúvida de que o trabalho está em causa. Quando o
suicídio acontece fora do local de trabalho e a pessoa deixa cartas, um diário,
onde explica por que se suicida, também não há dúvidas – são documentos
aterradores. Mas quando as pessoas se suicidam fora do local do trabalho e não
deixam uma nota, é muito complicado fazer a distinção. Porém, às vezes é
possível. Um caso recente – e uma das minhas vitórias pessoais – foi julgado
antes do Natal, em Paris. Foi um processo bastante longo contra a Renault por causa
do suicídio de vários engenheiros e cientistas altamente qualificados que
trabalhavam na concepção dos veículos, num centro de pesquisas da empresa em
Guyancourt, perto de Paris.
QUANDO
É QUE ISSO ACONTECEU?
Em
2006-2007. Houve cinco suicídios consecutivos; quatro atiraram-se do topo de
umas escadas interiores, do quinto andar, à frente dos colegas, num local com
muita passagem à hora do almoço. Mas um deles – aliás de origem portuguesa –
não se suicidou no local do trabalho. Era muitíssimo utilizado pela Renault nas
discussões e negociações sobre novos modelos e produção de peças no Brasil. Foi
utilizado, explorado de forma aterradora. Pediam-lhe constantemente para ir ao
Brasil e o homem estava exausto por causa da diferença horária. Era uma pessoa
totalmente dedicada, tinha mesmo feito coisas sem ninguém lhe pedir, como
traduzir documentos técnicos para português, para tentar ganhar o mercado
brasileiro para a empresa. A dada altura, teve uma depressão bastante grave e
acabou por se suicidar.
A
viúva processou a Renault, que em Dezembro acabou por ser condenada por “falta
imperdoável do empregador” [conceito do direito da segurança social em França],
por não ter tomado as devidas precauções.
Foi
um acontecimento importante porque, pela primeira vez, uma grande multinacional
foi condenada em virtude das suas práticas inadmissíveis. Os advogados do
trabalho apoiaram-se muito nos resultados científicos do meu laboratório. O
acórdão do tribunal tinha 25 páginas e as provas foram consideradas
esmagadoras. Havia e-mails onde o engenheiro dizia que já não aguentava mais –
e que a empresa fez desaparecer limpando o disco rígido do seu computador. Mas
ele tinha cópias dos documentos no seu computador de casa. A argumentação foi
imparável.
Toda
a gente tem problemas pessoais. Portanto, quando alguém diz que uma pessoa se
suicidou por razões pessoais, não está totalmente errado. Se procurarmos bem,
vamos acabar por encontrar, na maioria dos casos, sinais precursores, sinais de
fragilidade. Há quem já tenha estado doente, há quem tenha tido episódios
depressivos no passado. É preciso fazer uma investigação muito aprofundada.
Mas
se a empresa pretender provar que a crise depressiva de uma pessoa se deve a
problemas pessoais, vai ter de explicar por que é que, durante 10, 15, 20 anos,
essa pessoa, apesar das suas fragilidades, funcionou bem no trabalho e não
adoeceu.
Mas
como é que o trabalho pode conduzir ao suicídio? Só acontece a pessoas com
determinada vulnerabilidade?
Só
muito recentemente é que percebi que uma pessoa podia ser levada ao suicídio
sem que tivesse até ali apresentado qualquer sinal de vulnerabilidade psicopatológica.
Fiquei extremamente surpreendido com um caso em especial, do qual não posso
falar muito aqui, porque ainda não foi julgado, de uma mulher que se suicidou
na sequência de um assédio no trabalho.
A
Polícia Judiciária [francesa] tinha interrogado os seus colegas de trabalho e,
como a ordem vinha de um juiz, as pessoas falaram. Foram 40 depoimentos que
descreviam a maneira como essa mulher tinha sido tratada pelo patrão (apenas
uma contradiz as restantes 39). E o que emerge é que, devido ao assédio, ela
caiu num estado psicopatológico muito parecido com um acesso de melancolia.
Ora,
o que mais me espantou, quando procurei sinais precursores, é que não encontrei
absolutamente nada. E, pela primeira vez, comecei a pensar que, em certas
situações, quando uma pessoa que não é melancólica é escolhida como alvo de
assédio, é possível fabricar, desencadear, uma verdadeira depressão em tudo
igual à melancolia. Quando essa pessoa se vai abaixo, tem uma depressão,
autodesvaloriza-se, torna-se pessimista, pensa que não vale nada, que merece
realmente morrer.
Era
uma mulher hiperbrilhante, muitíssimo apreciada, muito envolvida, imaginativa,
produtiva. Tinha duas crianças óptimas e um marido excepcional. Falei com os
seus amigos, o marido, a mãe. Não encontrei nenhum sinal precursor, nem sequer
na sua infância.
Houve
um período crítico que terá durado um mês. As pessoas à sua volta deram por
isso. Viram que ela estava muito mal, o médico do trabalho foi avisado e
obrigou-a a parar de trabalhar e pediu a alguém que a levasse para casa. Mas
ela não queria parar, insistia que queria fazer o que tinha a fazer. A família
também percebeu que algo estava a acontecer, ela consultou um psiquiatra, mas é
impossível travar este tipo de descompensação. Foi para casa da mãe, mas quando
pensaram que estava a melhorar um pouco, relaxaram a vigilância e ela atirou-se
pela janela.
Nos
testemunhos recolhidos pela polícia, vê-se claramente que ninguém se atreveu a
ajudá-la; todos dizem que tinham medo. Tinham medo do patrão, que era um
tirano. Também assediava sexualmente as mulheres e esta mulher era muito
bonita. Não consegui saber se tinha havido assédio sexual, mas várias pessoas
evocam no seu depoimento que ela terá caído em desgraça porque se tinha
recusado a fazer o que ele queria.
Não.
Nas grandes empresas pode ser mais visível, mas há também muitas pequenas
empresas onde as coisas correm muito mal, onde os critérios são incrivelmente
arbitrários e onde o assédio pode ser pior. Nas grandes empresas, subsiste por
vezes uma presença sindical que faz com que os casos venham a público. Foi
assim na France Télécom. Mas não acredito que a destruição actual do mundo do
trabalho esteja a acontecer apenas nalgumas grandes multinacionais. E é
importante salientar que também há multinacionais onde as coisas correm bem.
Não
há estatísticas do suicídio no trabalho. Em França, foi constituída uma
comissão ministerial onde pela primeira vez foi dito claramente que é urgente
aplicar ferramentas que permitam analisar a relação entre suicídio e trabalho.
Mas, por enquanto, isso não existe. Nem na Bélgica, nem no Canadá, nem nos
Estados Unidos, não existe em sítio nenhum.
Na
Suécia, por exemplo, há provavelmente tantos suicídios no trabalho como em
França. Mas não há debate. Em muitos países não há debate, porque não existe
esse espaço clínico, essa nova medicina do trabalho que estamos a desenvolver
em França. De facto, a França é dos sítios onde mais se fala do assunto. O
debate francês interessa muita gente, mas também mete muito medo.
Em
França, foi feito um único inquérito, há quatro anos, pela Inspecção Médica do
Trabalho, em três departamentos [divisões administrativas], passando pelos
médicos do trabalho, e chegaram a um total de 50 suicídios em cinco anos. É provavelmente
um valor subestimado, mas, extrapolando-o a todos os departamentos, dá entre
300 e 400 suicídios no trabalho por ano.
É
uma segunda medida que foi introduzida na sequência da avaliação individual.
Acontece que, quando se faz a avaliação individual do desempenho, está-se a
querer avaliar algo, o trabalho, que não é possível avaliar de forma
quantitativa, objectiva, através de medições. Portanto, o que está a ser medido
na avaliação não é o trabalho. No melhor dos casos, está-se a medir o resultado
do trabalho. Mas isso não é a mesma coisa. Não existe uma relação de
proporcionalidade entre o trabalho e o resultado do trabalho.
É
como se em vez de olhar para o conteúdo dos artigos de um jornalista, apenas se
contasse o número de artigos que esse jornalista escreveu. Há quem escreva
artigos todos os dias, mas enfim... é para contar que houve um acidente de
viação ou outra coisa qualquer. Uma única entrevista, como esta por exemplo,
demora muito mais tempo a escrever e, para fazer as coisas seriamente, vai
implicar que o jornalista escreva entretanto menos artigos. Hoje em dia,
julga-se os cientistas pelo número de artigos que publicam. Mas isso não
reflecte o trabalho do cientista, que talvez esteja a fazer um trabalho difícil
e não tenha publicado durante vários anos porque não conseguiu obter
resultados.
Passados
uns tempos, surgem queixas a dizer que a qualidade [da produção ou do serviço]
está a degradar-se. Então, para além das avaliações, os gestores começam a
controlar a qualidade e declaram como objectivo a “qualidade total”. Não
conhecem os ofícios, mas vão definir pontos de controlo da qualidade. É
verdadeiramente alucinante.
Para
além de que declarar a qualidade total é catastrófico, justamente porque a
qualidade total é um ideal. É importante ter o ideal da qualidade total, ter o
ideal do “zero-defeitos”, do “zero-acidentes”, mas apenas como ideal.
Em
diabetologia, por exemplo, os gestores introduziram a obrigação de os médicos
fazerem, para cada um dos seus doentes, ao longo de três meses, a média dos
níveis de hemoglobina glicosilada A1c [ri-se], que é um indicador da
concentração de açúcar no sangue. A seguir, comparam entre si os grupos de
doentes de cada médico – é assim que controlam a qualidade dos cuidados
médicos. [ri-se]. Só que, na
realidade, quando tratamos um doente, às vezes o tratamento não funciona e
temos de perceber porquê. E finalmente, o doente acaba por nos confessar que
não consegue respeitar o regime alimentar que lhe prescrevemos, porque inclui
legumes e não féculas e que os legumes são mais caros... Tem três filhos e não
tem dinheiro para legumes. E então, vamos ter de encontrar um compromisso.Da mesma forma, se
um doente diabético é engenheiro e tem de viajar frequentemente para outros
fusos horários, torna-se muito difícil controlar a sua glicemia com insulina.
Mais uma vez, vai ser preciso encontrar um meio-termo. E isso é difícil.
Mesmo uma central
nuclear nunca funciona como previsto. Nunca. Por isso é que precisamos de
“trabalho vivo”. A qualidade total é um contra-senso porque a realidade se
encarrega de fazer com que as coisas não funcionem de forma ideal. Mas o gestor
não quer ouvir falar disso.
Ora, quando o ideal
se transforma na condição para obter uma certificação, o que acontece é que se
está a obrigar toda a gente a dissimular o que realmente se passa no trabalho.
Deixa de ser possível falar do que não funciona, das dificuldades encontradas.
Quando há um incidente numa central nuclear, o melhor é não dizer nada.
É. E em medicina
passa-se a mesma coisa. Faz-se batota. Hoje, existem nos hospitais as chamadas
“conferências de consenso” – acho que existem em toda a Europa – onde são
feitas recomendações precisas para o tratamento de tal ou tal doença. E quando
um médico recebe um doente, tem de teclar no computador para ver o que foi
estabelecido pela conferência de consenso. O médico, que tem o doente à sua
frente, pensa que essa não é a boa abordagem – porque sabe que o doente tem
problemas com a mulher, com os filhos e não vai conseguir fazer o tratamento
recomendado. Mas sabe também que se não fizer o que está lá escrito, e se por
acaso as coisas derem para o torto, poderá haver um inquérito, a pedido da
família ou de um gestor, e vão dizer que foi o médico que não fez o que devia.
O problema da qualidade total é que obriga muitos de nós a viver essa
experiência atroz que consiste em fazer o nosso trabalho de uma forma que nos
envergonha.
Cada vez mais. Há
especialidades com mais suicídios do que outras – nomeadamente entre os médicos
reanimadores. Em França é uma verdadeira hecatombe: é sabido que a profissão de
anestesista-reanimador é das que têm maior taxa de suicídios. Nesta
especialidade, os riscos de ser-se atacado em tribunal porque alguém morreu são
tão elevados que os médicos se protegem seguindo as instruções. Mesmo que
tenham a íntima convicção de que não era isso que deveriam fazer. Chegámos a
esse ponto.
É uma situação
insuportável e há médicos que não aguentam ver um doente morrer porque tiveram
medo de que isso se virasse contra eles. “Fiz o que estava escrito e o doente
morreu. Matei o doente.” Há cada vez mais reanimadores que se confrontam com
esta situação. Ainda por cima os cirurgiões atiram sempre as dificuldades que
encontram nas operações para cima do reanimador. Sempre. Cada vez que acontece
qualquer coisa, é porque o anestesista não adormeceu bem o doente, ou não o
acordou correctamente, ou não soube restabelecer a pressão arterial. O
cirurgião nunca admitirá que falhou nas suturas e que por isso o doente se esvaiu
em sangue.
Foram. Já não são.
Eu trabalhei anos nos hospitais, e adorava trabalhar lá, porque existia um
espírito de equipa fantástico. Éramos felizes no nosso trabalho. Hoje, as
pessoas não querem trabalhar nos hospitais, não querem fazer bancos, tentam
safar-se. São todos contra todos. Bastaram uns anos para destruir a
solidariedade no hospital. O que aconteceu é aterrador.
O que é importante
perceber é que a destruição dos elos sociais no trabalho pelos gestores nos
fragiliza a todos perante a doença mental. E é por isso que as pessoas se
suicidam. Não quer dizer que o sofrimento seja maior do que no passado; são as
nossas defesas que deixaram de funcionar.
Portanto, as
ferramentas de gestão são na realidade ferramentas de repressão, de dominação
pelo medo.
Sim, o termo exacto
é dominação; são técnicas de dominação.
Eu não diria que é
preciso acabar com tudo. Acho que não devemos renunciar à avaliação, incluindo
a individual. Mas é preciso renunciar a certas técnicas. Em particular, tudo o
que é quantitativo e objectivo é falso e é preciso acabar com isso. Mas há
avaliações que não são quantitativas e objectivas – a avaliação dos pares, da
colectividade, a avaliação da beleza, da elegância de um trabalho, do facto de
ser conforme às regras profissionais. Trata-se de avaliações assentes na
qualidade e no desempenho do ofício. Mesmo a entrevista de avaliação pode ser
interessante e as pessoas não são contra.
Mas
sobretudo, a avaliação não deve ser apenas individual. É extremamente
importante começar a concentrar os esforços na avaliação do trabalho colectivo
e nomeadamente da cooperação, do contributo de cada um. Mas como não sabemos
analisar a cooperação, analisa-se somente o desempenho individual.
O
resultado é desastroso. Não é verdade que a qualidade da produção melhorou. A
General Motors foi obrigada a alertar o mundo da má qualidade dos seus pneus; a
Toyota teve de trocar um milhão de veículos por veículos novos ou reembolsar os
clientes porque descobriu um defeito de fabrico. É essa a qualidade total
japonesa?
Hoje,
nos hospitais em França, a qualidade do trabalho não aumentou – diminui. O
desempenho supostamente melhorou, mas isso não é verdade, porque não se toma em
conta o que está a acontecer do lado do trabalho colectivo.
Temos
de aprender a pensar o trabalho colectivo, de desenvolver métodos para o
analisar, avaliar – para o cultivar. A riqueza do trabalho está aí, no trabalho
colectivo como cooperação, como maneira de viver juntos. Se conseguirmos salvar
isso no trabalho, ficamos com o melhor, aprendemos a respeitar os outros, a
evitar a violência, aprendemos a falar, a defender o nosso ponto de vista e a
ouvir o dos outros.
NÃO
HAVERÁ POR DETRÁS DESTA NOVA ORGANIZAÇÃO DO TRABALHO OBJECTIVOS DE CONTROLO DAS
PESSOAS, DE REDUÇÃO DA LIBERDADE INDIVIDUAL, QUE EXTRAVASAM O ÂMBITO
EMPRESARIAL?
É
uma questão difícil. Acho que qualquer método de organização do trabalho é ao
mesmo tempo um método de dominação. Não é possível dissociar as duas coisas. Há
40 anos que os sociólogos trabalham nisto. Todos os métodos de organização do
trabalho visam uma divisão das tarefas, por razões técnicas, de racionalidade,
de gestão. Mas não há nenhuma divisão técnica do trabalho que não venha
acompanhada de um sistema de controlo, em virtude do qual as pessoas vão
cumprir as ordens.
Há
tecnologias da dominação. O sistema de Taylor, ou taylorismo, é essencialmente
um método de dominação e não um método de trabalho. O método de Ford é um
método de trabalho.
Contudo,
não penso que a intenção do patronato (francês, em particular), nem dos homens
de Estado seja instaurar o totalitarismo. Mas é indubitável que introduzem
métodos de dominação, através da organização do trabalho que, de facto,
destroem o mundo social.
QUAL
É A DIFERENÇA ENTRE TAYLORISMO E FORDISMO?
Taylor
inventou a divisão das tarefas entre as pessoas e a interposição, entre cada
tarefa, de uma intervenção da direcção, através de um capataz. Há
constantemente alguém a vigiar e a exigir obediência ao trabalhador. A
palavra-chave é obediência. “Quando eu disser para parar de trabalhar e ir
comer qualquer coisa, você vai obedecer. Se concordar, será pago mais 50
cêntimos pela sua obediência.” A única coisa que importa é a obediência. O
objectivo é acabar com o ócio, os tempos mortos.
Só
muito mais tarde é que Ford introduziu uma nova técnica, a linha de montagem,
que é uma aplicação do taylorismo. Na realidade, não é o progresso tecnológico
que determina a transformação das relações sociais, mas a transformação das
relações de dominação que abre o caminho a novas tecnologias.
O
toyotismo [ou Sistema Toyota de Produção] utiliza um outro método de dominação,
o ohnismo [inventado por Taiichi Ohno (1912-1990)], diferente do taylorismo. É
um método particular que extrai a inteligência das pessoas de uma forma muito
mais subtil que o taylorismo, que apenas estipula que há pessoas que têm de
obedecer e outras que mandam.
No
ohnismo, trata-se de fazer com que pessoas beneficiem a empresa oferecendo a
sua inteligência e os conhecimentos adquiridos através da experiência. Para o
fazer, nos anos 1980, introduziu-se algo de totalmente novo: os chamados
“círculos de qualidade”.
O
sistema japonês foi realmente uma novidade em relação ao taylorismo, porque
ensinou as pessoas a colaborar sem as obrigar a obedecer – dando-lhes prémios,
pelo contrário. Quando uma sugestão de uma pessoa dá lucro, a empresa faz o
cálculo do dinheiro que a empresa ganhou com a ideia e reverte para o
trabalhador uma parte desse lucro. Trata-se de prémios substanciais.
Mas
há uma batota: os círculos de qualidade podiam durar horas, todos os dias,
reunindo as pessoas a seguir ao trabalho para alimentar a caixinha das ideias.
Todos se envolviam porque, por um lado, uma ideia que permitisse melhorar a
produção valia-lhes chorudos prémios, mas também porque quem participava neles
tinha um emprego vitalício garantido na empresa.
O
sistema foi exportado para a Europa, os EUA, etc. porque durante uns tempos, a
qualidade melhorou de facto. Mas a dada altura, as pessoas no Japão trabalhavam
tanto que começou a haver mortes por karōshi [literalmente “morte por excesso
de trabalho”.
O
QUE É O KARŌSHI?
É
uma morte súbita, geralmente por hemorragia cerebral (AVC), de pessoas novas
que não apresentam qualquer factor de risco cardiovascular. Não são obesos, não
sofrem de hipertensão, não têm níveis de colesterol elevados, não são
diabéticos, não fumam, não são alcoólicos, não tem uma história familiar de
AVC. Nada. A único factor que é possível detectar é o excesso de trabalho.
Estas pessoas trabalham mais de 70 horas por semana, sem contar as horas
passadas nos círculos de qualidade. Ou seja, são pessoas que estão literalmente
sempre a trabalhar. Mal param de trabalhar, vão dormir. As descrições de
colegas que foram fazer inquéritos no Japão são aterrorizadoras.
O
mundo do trabalho no Japão é alucinante. Há raparigas que entram nas fábricas
de electrónica, por exemplo, e que são utilizadas entre os 18 e os 21 anos –
porque aos 21 anos, já não conseguem aguentar as cadências de trabalho.
As
famílias confiam-nas às empresas por esses três anos, durante os quais elas se
entregam de corpo e alma ao trabalho. E nalguns casos, a empresa compromete-se
a casar a rapariga no fim dos três anos. É mesmo um sistema totalitário. E
mais: essas jovens trabalham 12 a 14 horas por dia e depois vão para uns
dormitórios onde há uma série de gavetões – cada um com cama e um colchão –,
deitam-se na cama e fecha-se o gavetão. Dormem assim, empilhadas em gavetões.
Três anos… em gavetões… é preciso ver para crer.
Não,
pelo menos em França nunca funcionaria. Ainda não chegámos lá, disso tenho a
certeza.
MAS
ACHA QUE PODERIA ACONTECER?
Sim,
acho que poderíamos lá chegar. Tudo é possível. Mas ao contrário do que se diz,
não há uma fatalidade, não é a mundialização que determina as coisas, não é a
guerra económica. É perfeitamente possível, no contexto actual, trabalhar de
outra maneira, e há empresas que o fazem, com uma verdadeira preocupação de
preservar o “viver juntos”, para tentar encontrar alternativas à abordagem
puramente de gestão. O que não impede que a tendência seja para a desestruturação
um pouco por todo o lado. É difícil resistir-lhe.
UMA
EMPRESA QUE DEFENDESSE OS PRINCÍPIOS DA LIBERDADE, DA IGUALDADE E DA
FRATERNIDADE CONSEGUIRIA SOBREVIVER NO ACTUAL CONTEXTO DE MERCADO?
Hoje,
estou em condições de responder pela afirmativa, porque tenho trabalhado com
algumas empresas assim. Ao contrário do que se pensa, certas empresas e alguns
patrões não participam do cinismo geral e pensam que a empresa não é só uma
máquina de produzir e de ganhar dinheiro, mas também que há qualquer coisa de
nobre na produção, que não pode ser posta de lado. Um exemplo fácil de perceber
são os serviços públicos, cuja ética é permitir que os pobres sejam tão bem
servidos como os ricos – que tenham aquecimento, telefone, electricidade. É
possível, portanto, trabalhar no sentido da igualdade.
Há
também muita gente que acha que produz coisas boas – os aviões, por exemplo,
são coisas belas, são um sucesso tecnológico, podem progredir no sentido da
protecção do ambiente. O lucro não é a única preocupação destas pessoas.
E,
entre os empresários, há pessoas assim – não muitas, mas há. Pessoas muito
instruídas que respeitam esse aspecto nobre. E, na sequência das histórias de
suicídios, alguns desses empresários vieram ter comigo porque queriam repensar
a avaliação do desempenho. Comecei a trabalhar com eles e está a dar resultados
positivos.
O
QUE FIZERAM?
Abandonaram
a avaliação individual – aliás, esses patrões estavam totalmente fartos dela.
Durante um encontro que tive com o presidente de uma das empresas, ele confessou-me,
após um longo momento de reflexão, que o que mais odiava no seu trabalho era
ter de fazer a avaliação dos seus subordinados e que essa era a altura mais
infernal do ano. Surpreendente, não? E a razão que me deu foi que a avaliação
individual não ajuda a resolver os problemas da empresa. Pelo contrário, agrava
as coisas.
Neste
caso, trata-se de uma pequena empresa privada que se preocupa com a qualidade
da sua produção e não apenas por razões monetárias, mas por questões de
bem-estar e convivialidade do consumidor final. O resultado é que pensar em
termos de convivialidade faz melhorar a qualidade da produção e fará com que a
empresa seja escolhida pelos clientes face a outras do mesmo ramo.
Para
o conseguir, foi preciso que existisse cooperação dentro da empresa, sinergias
entre as pessoas e que os pontos de vista contraditórios pudessem ser
discutidos. E isso só é possível num ambiente de confiança mútua, de lealdade,
onde ninguém tem medo de arriscar falar alto.
Se
conseguirmos mostrar cientificamente, numa ou duas empresas com grande
visibilidade, que este tipo de organização do trabalho funciona, teremos dado
um grande passo em frente.
divulgo a vonda do Dejurs em Julho em Brasilia
ResponderExcluirergoepsicod.org
Att,
Katia Tarouquella Brasil
Ok..valeu..
ResponderExcluir