Depois, no auditório,
um monte de gente reunida. Gente dos 4 cantos do estado. Gente também como eu,
querendo participar de um curso em saúde da família. Fico pensando no escândalo
do Hospital Universitário, que está logo ali, a poucos metros. Fico pensando na
própria situação de saúde pública do município, com várias polêmicas,
denúncias, corrupção. Quase não estava saindo da minha cabeça esse assunto.
Indignado. Fico pensando se alguém, se algumas das autoridades, falará sobre o
assunto, se dará alguma explicação. Se algum palestrante citará algum caso.
Fará algum paralelo. Ao menos alguma coisa.
No telão do salão,
passando animais do Pantanal. Garça. Capivara. Rios. Matas. Umbrais. E música
de Almir Sater. Acho que ninguém falará de nada mesmo.
Na mesa de
autoridades, o representante do Reitor, e o coordenador do curso de medicina.
Ninguém falou nenhum “a” sobre o escândalo daquela instituição que está “logo
ali.” Será que não é importante falar alguma coisa sobre aquele escândalo?
Medicina não é o curso principal na área de saúde? Eu sei que é um curso de
Atenção Básica, mas não é interessante ao menos dar, recitar uma nota, sobre o
que está ocorrendo ali? Não tem uma relação intrínseca Atenção Básica, com o
hospital, considerado alta complexidade?
Ninguém falou nada.
Mas na mesa de autoridade, começou a falar um importante médico daqui da
cidade. Eu sempre presto atenção ao que ele fala. Era só para ele dar boas
vindas a nós alunos, mas tomou o microfone e falou algumas coisas que anotei,
pois achei muito interessantes.
Primeiro ele falou
algo que não concordei muito. Ele disse que estava impressionado com os números
que esse curso estava apresentando. Que a cada turma do curso se formavam,
capacitavam, muitas pessoas, e a soma total, de todas as turmas, passava mais
de mil pessoas, milhares. Ele estava defendendo o método do EAD. Disse que era
um método incrível, e que se fosse pelo método de ensino mais tradicional, de
alguns alunos em uma sala de aula presencialmente, pelo número que a
Universidade já havia formado até então, se fosse pelo método anterior, seriam
necessário mais de 60 anos para que se atingisse esse mesmo número de pessoas
“capacitadas.” E bem como sabemos, "capacitadas", é um termo muito abrangente, no mínimo.
Eu acho muito
interessante o método de Educação a Distância. Mas acredito que esse método não
deva ser visto assim com tanto “glamour”. A sua qualidade depende muitas vezes
da instituição que está por detrás do EAD. E acredito que não tem nem comparação,
em termos de se “adquirir conhecimento”, o EAD, em comparação com o método
presencial. Já tive algumas experiências nos dois métodos.
Para mim é complicado
pensar em “HUMANIZA SUS” em EAD.
Mas acho que vai ser
muito bom esse curso.
Entretanto, o
conhecimento que adquirimos nas “entrelinhas”, em contato direto com colegas,
professores, isso é inestimável em minha opinião. Que nenhum computador, nem
programa, software, poderá me proporcionar. Sou ainda do tempo do “olho no
olho”. E acredito que muito do que está necessitando o SUS, a Atenção Básica, são
justamente ensinamentos, práticas, que podemos aprender em contato direto com o
outro. Assim, um computador amputa totalmente algumas possibilidades de
aprendizagem.
E fico pensando que
temos que tomar muito cuidado com o EAD, no sentido do “tempo”. Pois vou me
esforçar para realizar todas as atividades, em ambiente e horário de trabalho
no máximo possível. Pois geralmente, o que acontece, é a pessoa em EAD, e a
praticidade que o computador possibilita, realizar as atividades, ver as aulas,
e exercícios, em casa, à noite, finais de semana, ou no horário de almoço (como
estou fazendo agora). Pois são momentos estes, que deveriam estar voltados para
o descanso, lazer, família, amigos, etc.
Enfim, continuando na
fala desse professor, ele começou defendendo o SUS. Disse que o SUS veio
proporcionar atendimento de saúde para 40, 50 milhões de pessoas que antes não
tinham nenhum tipo de "acesso a saúde" . Pois essas pessoas aqui no Brasil eram consideradas
indigentes, ou seja, “não-gentes”. E que isso era um avanço social fantástico.
Entretanto,
completou, dizendo que devidos a ataques midiáticos dos meios de comunicação de
massa, só é retratado o SUS que não funciona, seus entraves. E que os
avanços, como o citado acima, são esquecidos. Ele disse que essa espécie de
“terrorismo”, é motivada muitas vezes por corporações de saúde privadas, no
intuito de que essa nova classe média, calcada apenas em aspectos financeiros,
adquira planos particulares de saúde, ao invés da defesa e construção do SUS.
Uma frase citada por
ele, sobre os nossos dias, o capitalismo: “Temos o valor de uso, mas não temos
valor de troca.”
Esse mesmo professor
ainda disse, que depois de todo esse montante de profissionais de saúde de
nível superior “capacitados” para atuar na atenção básica (que já participaram
do mesmo curso que estávamos começando), o que eles (a Universidade) deveriam
focalizar agora, eram cursos, capacitações, voltados aos trabalhadores de nível
técnico. Achei isso muito bom. E concordo plenamente com ele. Acho que os
trabalhadores de saúde, de nível técnico, é um grande contingente de pessoas
nas unidades de saúde, que muitas vezes são “esquecidos” por todos nós.
Eu particularmente
tento realizar um trabalho muito grande voltado aos/com os Agentes Comunitários
de Saúde. Inclusive fiquei muito feliz em saber que uma colega agente de saúde,
estava fazendo o curso devido minha “propaganda”. Ela tem nível superior, e uma
vez me perguntou se eu sabia de algum curso para ela fazer. Assim, eu estou
sempre informando a ela, sobre cursos na área de saúde.
Por fim, esse
professor ainda falou, que fazendo ele parte de um “coletivo”, onde se discute
várias pautas relacionadas a saúde pública, teria que “alertar” a todos nós,
sobre o retrocesso que está surgindo em políticas públicas, com a nova “lei de
combate as drogas”. Disse que ele e o coletivo dele eram totalmente contrários
a nova lei que está em trâmite no congresso, tratando desse assunto, que faz
regulamentar absurdos como a internação compulsória. E até mesmo falou algo
sobre a possibilidade de se compor uma lista, onde estariam nomes de pessoas
usuárias de drogas no país. E também que nessa lei, está a criação de um
“disk-denúncia de drogas na escola”, onde adolescentes poderiam ligar para um
número e denunciar algum colega de escola, suspeito de fazer uso de Drogas. Ele
disse que isso tinha um cheiro forte de resquícios de ditadura militar.
Enfim, foram essas
suas considerações.
Novamente, “apenas” o
que para mim ficou faltando em sua fala, é que ele sendo “fruto” da
Universidade, e tendo importante cargo público na área da saúde do estado,
poderia falar alguma coisa sobre a situação caótica de escândalos da saúde
daqui. Pois sempre é muito mais fácil criticar “o outro”, e nunca a
autocrítica. Só isso que achei que faltou esse professor ter citado em sua
fala.
Depois, foi a vez do
palestrante principal, dar sua “aula inaugural”. Veio um médico sanitarista falar
sobre a Política Nacional de Atenção Básica.
Ele falou
“mornamente”, ressaltando alguns pontos que estamos todos quase cansados de
saber, e que temos que tirar tudo isso do papel (só me lembro de algumas coisas
e anotei):
o
Se
a Atenção Básica é resolutiva, ela é capaz de resolver tanto problemas
individuais, como coletivos.
o
A
Atenção Básica pode/deve reorganizar a Atenção a Saúde.
o
Ele
falou que quando existe um lugar, com grande investimento em prontos
atendimentos, como os UPA´s, em detrimento ao investimento em Atenção Básica, o
resultado disso, são níveis altos de medicalização, e de auto-custo de
financiamento. (Isso é bem a realidade em minha opinião, de nossa cidade,
estado).
o
A
perspectiva de trabalho multiprofissional, é uma perspectiva Brasileira. Na
Atenção Básica de outros países também fortes nesse nível de atenção a saúde,
não existe esse “formato” multidisciplinar.
Por fim, já não
restava mais ninguém no auditório, eu fiquei esperando, para ver se aconteceria
algum debate. Até passou pela minha cabeça, fazer alguma pergunta para o
representante do Ministério, sobre alguma informação sobre o escândalo que
estava acontecendo aqui na capital. Como Brasília estava “vendo” isso tudo. Mas
não ia querer causar nenhum constrangimento. Mas gostaria de ao menos escutar o
que ele teria para falar informalmente, sem os slides.
Para nós,
trabalhadores da ponta, é sempre um privilégio, termos “contato” ao menos
visual, auditivo, com alguma pessoa assim, do Ministério da Saúde. E ele havia
dito na palestra, que seria rápido para sobrar tempo para a discussão. Mas o
que acorreu, foi que findada sua fala, com poucos “gatos pingados” no
auditório, a coordenação do curso já falou do horário do almoço. E todos fomos
embora.
São medidas/posturas
assim, que ocorrem em micro contextos, que fazem em minha opinião, deixar o
povo cada vez mais pacífico, paciente. E depois, reclamam dizendo que o povo
não se interessa mais por política. É que não existem mais espaços para
discussões. Claro: no “ambiente virtual” terá muito espaço para discussão. Mas
não é a mesma coisa.
Como falei, não
queria constranger ninguém. Queria apenas trocar uma palavra com o
representante do Ministério, talvez. Então, que tipo de educação em saúde nós
queremos, fiquei pensando? Problematizadora, crítica, ou apenas essa vertical,
onde algumas pessoas falam, soando como: “voz da verdade,,,,” Fico pensando
nessas coisas.
Já no momento da
tarde, a professora, falou um pouco sobre a questão do PI- que é o Projeto de
Intervenção, que todos teremos que entregar, no final do curso. Então, ao
invés da Monografia Final, ou como se diz TCC – Trabalho de Conclusão de Curso,
ou até mesmo um Artigo Científico, nessa pós-graduação, entregaremos o PI.
Achei interessante,
essa proposta de PI no final do curso. Entretanto, só não gostei de um aspecto,
expressos pelos seguintes comentários da nossa professora: “Esse é um trabalho
diferente de um trabalho científico”. “Esse trabalho não será como um trabalho
científico”. “Esse trabalho não terá o mesmo rigor que um trabalho científico”.
Ou seja, o que eu entendi, é que esse nosso trabalho, tem alguma coisa de
“menor valia”, que um trabalho dito científico logo de início.
Concordo até com a
ideia de que não é um trabalho científico. Mas deu a impressão de que seja um
trabalho a ser realizado, mais “fácil”. Acho que o PI não deve ser “menor”, ou
“maior” que um trabalho científico. Mas diferente, isso sim.
Em um questionamento
que eu fiz da questão do diferente, eu perguntei para a professora, se esse
trabalho de PI, poderia ser, de algum trabalho que já foi realizado, ou mesmo,
que está em andamento. Ela disse que já realizado não, mas que em andamento,
poderia até ser.
Eu perguntei isso, devido
pensar, que são 500 alunos, e que não é possível, que pelo menos alguns dos demais colegas,
não tenha algum tipo de trabalho interessante, experiência, para compartilhar com os colegas, publiciza-lo
para nós. Talvez um colega tenha um, ou até dois trabalhos interessantes, e que
não tenha tido tempo ainda de escrever sobre, e que no curso, poderia se dar
mais aporte “teórico” ao trabalho. Colocando no PI aquilo que vem trabalhando
ao longo dos anos, e às vezes até, ao longe de décadas...
E todos nós sabemos
que existem muitos profissionais, e eu acho que sou um desses, que quer estar
no curso, não apenas para aprender (eu quero muito aprender “mais”), mas
também, para trocar experiências, práticas, percepções, daquilo que eu penso
que a grande maioria de nós, comprometidos e eticamente engajados nos serviços,
já estamos realizando.
Às vezes, existirá
algum colega que lerá algum texto, disponibilizado pelos professores do curso,
e a “ficha cairá”, dizendo: “puxa, eu já faço isso no meu contexto, estou no
caminho certo.” E não apenas trabalhadores que vão fazer totalmente diferente
ao que estão trabalhando, pois “não é assim que estaria nos livros”, ou que
não é o que os professores ensinaram.
Existe uma questão
geral, relacionado a isso que eu escrevi acima, que é a questão de que nós,
trabalhadores “da ponta”, não produzimos, ou até mesmo, não temos “o
conhecimento”. Pode até ser que não seja o tipo de conhecimento mais valorizado
socialmente, como é o próprio conhecimento tido científico. Mas nós da ponta,
carregamos muitos “conhecimentos”, que é só nosso, próprio, de quem está lá no
serviço, diariamente. Não é o do escritor do livro de atenção básica, não é o
do professor universitário, não é o do nosso gestor da secretaria da saúde, nem
mesmo do Ministro Padilha. É diferente. E único. E por isso importantíssimo. E
isso que é o nosso diferencial. E é isso em minha opinião, que deve ser
ressaltado no PI. Talvez não seja o “rigor” científico, mas a questão da
realidade, “nua e crua”, crítica, das dificuldades, avanços e desafios, que
nós, diariamente, estamos totalmente imersos.
É
isso. Desculpe ter me alongado em demasia na narrativa.
Esse
foi o relato do meu primeiro dia de aula.
Gostei
bastante de tudo. Fez-me pensar bastante.
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