ENTREVISTA QUE ESTAVA GUARDADA AQUI - REPASSANDO
Revista Época
A carioca Vera Cordeiro não se conformava com e perceber que seus pacientes no Hospital da Lagoa, no Rio de Janeiro, recebiam alta e voltava a se internar com os mesmos problemas de saúde, por falta de estrutura familiar. Para acabar com essa rotina, ela fundou, em 1991, a ONG Associação Saúde Criança Renascer – que,
apesar do nome, não tem nenhuma ligação com a igreja Renascer. Aos leitores de
ÉPOCA, ela explica como já conseguiu ajudar mais de 20 mil crianças e seus
familiares com ações simples, como arrumar emprego para os pais e financiar uma
pequena reforma na casa do paciente.
ENTREVISTA
Vera Cordeiro | |
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FORMAÇÃO Nascida no Rio de Janeiro, Vera Cordeiro tem 57
anos e se formou em Medicina pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, em
1975. É clínica-geral, com espe-cialização em nefrologia
CARREIRA Por três anos, Vera trabalhou num consultório particular para adultos. Atuou no núcleo de pediatria do Hospital da Lagoa, no Rio, por dez anos. Desde 1998, dedica-se exclusivamente às famílias da ONG Renascer, que ganhou em 2003 o prêmio de ONG mais inovadora do mundo da Global |
Como a senhora começou a desenvolver um trabalho voluntário?
Vera Lucia Graziani, São Paulo, SP
Vera Cordeiro – Sempre entendi que o que eu
mais gostava na medicina era a relação médico–paciente, a compreensão das
condições de vida para tratar a mesma patologia por diferentes caminhos,
inclusive mudando o estilo de vida do paciente. Tive consultório particular
durante três anos, no qual trabalhava com adultos. Mas isso não me apaixonava
tanto. Quando fundei a Renascer, achava minha vida completamente louca. Apesar
de viver na Barra da Tijuca e viajar para fora do Brasil, no dia seguinte, ao
voltar da viagem, via uma mãe que pedia para eu criar o filho dela porque ele ia
morrer se não ganhasse um leite especial porque tinha síndrome de rejeição. Ela
estava internada, tinha sido demitida e não ia ter dinheiro quando saísse do
hospital! Comecei a ver que não tinha sentido ter clínica particular. E que eu
precisava encontrar um local para fazer um movimento para ajudar as crianças
pós-alta. Como eu tinha um suporte financeiro, do dinheiro que eu ganhava no
hospital mais o de meu marido – compreensivo, como minhas filhas –, tive a
liberdade de trabalhar como voluntária. Era uma situação que me permitia ajudar
crianças no pós-alta. As mães da classe baixa muitas vezes aceitam melhor a
doença que as demais. O que elas não aceitam são as condições nas quais têm de
conviver com a doença.
Trabalho no Hospital da Lagoa e acompanho o drama dessas famílias. Às
vezes, tenho a sensação de que, por mais que se faça, nunca é o bastante. A
senhora também sente isso? Virginia Wildhagen, Rio de Janeiro,
RJ
Vera – Interessante. Queria saber em que
setor do hospital a leitora trabalha, porque, na Renascer, ela veria que a
situação é mais tranqüila. Quando as famílias chegam ao hospital, entendo que
elas sintam mais sofrimento ainda, porque não estão vendo todas as ações que
estão sendo feitas pela Renascer. A mãe com cinco filhos, todos com aids,
percebe que nada que fizer vai ser suficiente, porque ela deveria ter estudado,
ter um background que não teve. Trabalhar na Renascer é tão bom porque é
justamente a sensação oposta. Quando as famílias chegam, vejo a cada dia,
ouvindo as histórias delas, como elas vão ficando com auto-estima, se
profissionalizando, vendo o próprio dinheiro, às vezes chorando de emoção quando
vêem a própria casa reformada. Essa metodologia que a gente tem é extremamente
poderosa. O Betinho (o sociólogo Herbert de Souza, 1935-1997) dizia que
era impossível dar alta às pessoas que viviam abaixo da linha da pobreza num
país como o Brasil. A gente diz que deu certo porque ouvimos a população,
construindo uma metodologia social de baixo para cima. Não é da noite para o dia
que se transformam as pessoas. Mas temos hoje certeza de que a família vai estar
em outro patamar e, provavelmente, será capaz de prover o próprio
sustento.
O que a senhora chama de “falso tratamento” hospitalar?
Ana Lúcia Minks, Rio do Sul, SC
Vera – O falso tratamento é tratar a
pneumonia esquecendo que a causa não é a bactéria, mas sim a pobreza. Se você
quer realmente curá-la, tem de trabalhar de outra forma. Porque daqui a pouco a
criança vai ter desnutrição, com bronquite asmática. Os nomes da miséria vão ser
traduzidos em vários, mas, se não a combater, esse ciclo de internação vai se
perpetuar. Claro que outras doenças, como leucemia, não são causadas pela
miséria. Mas uma criança que vive na Avenida Vieira Souto (em Ipanema,
bairro nobre do Rio de Janeiro) vai ter muito mais chance de se recuperar
que a que vive na favela. Foi trabalhando na pediatria do hospital, durante dez
anos, que comecei a perceber isso. Prescrevia remédios, olhava para o rosto da
mãe e via que ela não tinha nem condições de pagar o ônibus de volta para casa
com o filho, que dirá comprar o remédio. E todo o dinheiro gasto nessa consulta
pública, com seu e meu dinheiro, iria por água abaixo. Porque um mês depois essa
criança estava de volta ao hospital. A doença é a ponta do iceberg.
Por que uma ONG consegue implementar essas ações e o sistema público
não? O que falta para essas experiências chegarem ao Sistema Único de Saúde?
Maurilho da Costa Silva, Rio Branco, AC
Vera – O melhor dos mundos é a interação
entre empresas, instituições da sociedade civil e governos sérios. Só um governo
pode dar uma escala continental a um projeto. É um delírio ONG tomar conta de
saúde. Só que muitas vezes o governo não ouve a população. As organizações
sérias do setor cidadão são mais eficientes porque sabem dos problemas de seu
público. Só que ela não tem os recursos humanos e materiais para oferecer um
serviço em grande escala. Eu já estive conversando com algumas instâncias de
governo. Mas foi preciso ter um facilitador externo, uma organização chamada
Avina (ONG suíça), para juntar o Estado de São Paulo. O que falta é
intercomunicação com os vários setores nos sistemas públicos. Ainda assim, a
metodologia da Renascer já se multiplicou por 22 hospitais públicos no Brasil.
A filantropia, embora fundamental, não torna governo e empresas ainda
mais acomodados? Moisés Marock, São Luís, MA
Vera – Os governos, bons ou ruins, têm de
ser fiscalizados pelo cidadão. O fato de ele pagar impostos não o exime da
necessidade de se fazer presente numa instituição séria da área de seu
interesse. Nos países de Primeiro Mundo, onde os impostos são mais bem
empregados, existe uma cultura de voluntariado! Por que aqui essa cultura não
pode existir?
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