quarta-feira, 26 de junho de 2013

"A POBREZA MATA MAIS QUE A BACTÉRIA"

ENTREVISTA QUE ESTAVA GUARDADA AQUI  - REPASSANDO
 
Revista Época
 
A carioca Vera Cordeiro não se conformava com e perceber que seus pacientes no Hospital da Lagoa, no Rio de Janeiro, recebiam alta e voltava a se internar com os mesmos problemas de saúde, por falta de estrutura familiar. Para acabar com essa rotina, ela fundou, em 1991, a ONG Associação Saúde Criança Renascer – que, apesar do nome, não tem nenhuma ligação com a igreja Renascer. Aos leitores de ÉPOCA, ela explica como já conseguiu ajudar mais de 20 mil crianças e seus familiares com ações simples, como arrumar emprego para os pais e financiar uma pequena reforma na casa do paciente.
 
ENTREVISTA
Vera Cordeiro
Daryan Dornelles
FORMAÇÃO Nascida no Rio de Janeiro, Vera Cordeiro tem 57 anos e se formou em Medicina pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, em 1975. É clínica-geral, com espe-cialização em nefrologia

CARREIRA Por três anos, Vera trabalhou num consultório particular para adultos. Atuou no núcleo de pediatria do Hospital da Lagoa, no Rio, por dez anos. Desde 1998, dedica-se exclusivamente às famílias da ONG Renascer, que ganhou em 2003 o prêmio de ONG mais inovadora do mundo da Global

Como a senhora começou a desenvolver um trabalho voluntário? Vera Lucia Graziani, São Paulo, SP
Vera Cordeiro – Sempre entendi que o que eu mais gostava na medicina era a relação médico–paciente, a compreensão das condições de vida para tratar a mesma patologia por diferentes caminhos, inclusive mudando o estilo de vida do paciente. Tive consultório particular durante três anos, no qual trabalhava com adultos. Mas isso não me apaixonava tanto. Quando fundei a Renascer, achava minha vida completamente louca. Apesar de viver na Barra da Tijuca e viajar para fora do Brasil, no dia seguinte, ao voltar da viagem, via uma mãe que pedia para eu criar o filho dela porque ele ia morrer se não ganhasse um leite especial porque tinha síndrome de rejeição. Ela estava internada, tinha sido demitida e não ia ter dinheiro quando saísse do hospital! Comecei a ver que não tinha sentido ter clínica particular. E que eu precisava encontrar um local para fazer um movimento para ajudar as crianças pós-alta. Como eu tinha um suporte financeiro, do dinheiro que eu ganhava no hospital mais o de meu marido – compreensivo, como minhas filhas –, tive a liberdade de trabalhar como voluntária. Era uma situação que me permitia ajudar crianças no pós-alta. As mães da classe baixa muitas vezes aceitam melhor a doença que as demais. O que elas não aceitam são as condições nas quais têm de conviver com a doença.
Trabalho no Hospital da Lagoa e acompanho o drama dessas famílias. Às vezes, tenho a sensação de que, por mais que se faça, nunca é o bastante. A senhora também sente isso? Virginia Wildhagen, Rio de Janeiro, RJ
Vera – Interessante. Queria saber em que setor do hospital a leitora trabalha, porque, na Renascer, ela veria que a situação é mais tranqüila. Quando as famílias chegam ao hospital, entendo que elas sintam mais sofrimento ainda, porque não estão vendo todas as ações que estão sendo feitas pela Renascer. A mãe com cinco filhos, todos com aids, percebe que nada que fizer vai ser suficiente, porque ela deveria ter estudado, ter um background que não teve. Trabalhar na Renascer é tão bom porque é justamente a sensação oposta. Quando as famílias chegam, vejo a cada dia, ouvindo as histórias delas, como elas vão ficando com auto-estima, se profissionalizando, vendo o próprio dinheiro, às vezes chorando de emoção quando vêem a própria casa reformada. Essa metodologia que a gente tem é extremamente poderosa. O Betinho (o sociólogo Herbert de Souza, 1935-1997) dizia que era impossível dar alta às pessoas que viviam abaixo da linha da pobreza num país como o Brasil. A gente diz que deu certo porque ouvimos a população, construindo uma metodologia social de baixo para cima. Não é da noite para o dia que se transformam as pessoas. Mas temos hoje certeza de que a família vai estar em outro patamar e, provavelmente, será capaz de prover o próprio sustento.

"Se você quer curar a pneumonia, tem de combater a miséria e a desnutrição"


O que a senhora chama de “falso tratamento” hospitalar? Ana Lúcia Minks, Rio do Sul, SC
Vera – O falso tratamento é tratar a pneumonia esquecendo que a causa não é a bactéria, mas sim a pobreza. Se você quer realmente curá-la, tem de trabalhar de outra forma. Porque daqui a pouco a criança vai ter desnutrição, com bronquite asmática. Os nomes da miséria vão ser traduzidos em vários, mas, se não a combater, esse ciclo de internação vai se perpetuar. Claro que outras doenças, como leucemia, não são causadas pela miséria. Mas uma criança que vive na Avenida Vieira Souto (em Ipanema, bairro nobre do Rio de Janeiro) vai ter muito mais chance de se recuperar que a que vive na favela. Foi trabalhando na pediatria do hospital, durante dez anos, que comecei a perceber isso. Prescrevia remédios, olhava para o rosto da mãe e via que ela não tinha nem condições de pagar o ônibus de volta para casa com o filho, que dirá comprar o remédio. E todo o dinheiro gasto nessa consulta pública, com seu e meu dinheiro, iria por água abaixo. Porque um mês depois essa criança estava de volta ao hospital. A doença é a ponta do iceberg.
Por que uma ONG consegue implementar essas ações e o sistema público não? O que falta para essas experiências chegarem ao Sistema Único de Saúde? Maurilho da Costa Silva, Rio Branco, AC
Vera – O melhor dos mundos é a interação entre empresas, instituições da sociedade civil e governos sérios. Só um governo pode dar uma escala continental a um projeto. É um delírio ONG tomar conta de saúde. Só que muitas vezes o governo não ouve a população. As organizações sérias do setor cidadão são mais eficientes porque sabem dos problemas de seu público. Só que ela não tem os recursos humanos e materiais para oferecer um serviço em grande escala. Eu já estive conversando com algumas instâncias de governo. Mas foi preciso ter um facilitador externo, uma organização chamada Avina (ONG suíça), para juntar o Estado de São Paulo. O que falta é intercomunicação com os vários setores nos sistemas públicos. Ainda assim, a metodologia da Renascer já se multiplicou por 22 hospitais públicos no Brasil.
A filantropia, embora fundamental, não torna governo e empresas ainda mais acomodados? Moisés Marock, São Luís, MA
Vera – Os governos, bons ou ruins, têm de ser fiscalizados pelo cidadão. O fato de ele pagar impostos não o exime da necessidade de se fazer presente numa instituição séria da área de seu interesse. Nos países de Primeiro Mundo, onde os impostos são mais bem empregados, existe uma cultura de voluntariado! Por que aqui essa cultura não pode existir?
 
 

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