Contardo Calligaris
Por definição, os anarquistas não gostam de pertencer a coletividades,
comunidades e grupos. Eles têm em comum uma antipatia (se não um ódio) pelos
poderes instituídos, do Estado às igrejas, passando pelas torcidas, os partidos,
os clubes etc. Fora esse sentimento comum, eles preferem pensar cada um por
conta própria.
Mas, embora haja mil maneiras de ser anarquista, existe uma grande distinção
que talvez seja legítima.
Há os anarquistas clássicos, que a esquerda gosta de incluir em suas
fileiras. Grosso modo, eles acham que o fim do Estado e de todas as igrejas (por
exemplo) criará uma nova sociedade de homens livres e pares. Tradicionalmente,
esses anarquistas, por serem alérgicos ao poder dos partidos e dos Estados
pretensamente "revolucionários", foram usados e, no fim, massacrados por seus
supostos "companheiros" comunistas e socialistas (como aconteceu na guerra da
Espanha).
E há os anarquistas que são hoje chamados de anarco-capitalistas, que a
direita gosta de incorporar. Os anarco-capitalistas não sonham com uma sociedade
radicalmente nova, eles apostam que a economia de mercado seja capaz de se
contrapor ao Estado e aos poderes instituídos, de forma a substituí-los e
torná-los desnecessários.
O que se ganharia com isso? Os anarco-capitalistas acham que, em matéria de
liberdade, ser consumidor é um jeito relativamente pouco custoso de ser cidadão.
Isso, sobretudo nas últimas décadas, em que o consumo tende a não ser
massificado. Ou seja, a ideia anarco-capitalista é que, se deixássemos o mercado
regrar nossa sociedade, nossa vida seria menos controlada e regrada do que ela é
agora, pelo Estado e outros poderes.
Pergunta: sem o Estado, quem nos protegeria contra os abusos do mercado? É
bom não esquecer que os anarquistas, em tese, se protegem sozinhos: se você não
gosta de delegar poder a uma instituição, seja ela qual for, deve estar disposto
a fazer polícia e justiça com suas mãos (é por isso, aliás, que o movimento
libertário dos EUA sempre será fortemente favorável à livre circulação das
armas).
Fato curioso, há uma similitude entre os anarco-capitalistas e os
neoliberais. Mas é melhor explicar um pouco, porque (sobretudo se formos
"progressistas") nossa visão dos neoliberais é distorcida.
Os liberais clássicos, tipo Adam Smith, querem preservar a liberdade do
mercado dentro de qualquer sistema político.
Para os neoliberais de hoje, o mercado poderia (ou deveria) substituir
qualquer sistema de governo a ponto de torná-lo desnecessário.
Há duas maneiras de entender essa ideia. Uma consiste em pensar que os
neoliberais querem nos entregar de mãos atadas às grandes corporações e à
sedução de sua propaganda. A outra consiste em pensar que os neoliberais são
extremamente próximos dos anarco-capitalistas: querem que o mercado nos liberte,
ou melhor, imaginam que o mercado seja a forma de organização social mínima, a
que controla menos a nossa vida.
Para quem se deu a pena de ler Friedrich Hayek (que talvez seja o maior
pensador do neoliberalismo --vários livros em português, publicados pelo
Instituto Ludwig Von Mises), a resposta que faz mais sentido é a segunda.
Ou seja, há uma séria proximidade entre neoliberais e anarco-capitalistas.
Essa proximidade consiste numa paixão comum pela liberdade do indivíduo como
valor que não pode nem deve ser alienado em favor de entidade coletiva alguma.
Um sociólogo francês, Geoffroy de Lagasnerie, tenta há tempos defender uma
leitura atenta dos autores neoliberais (para ter uma ideia da polêmica, um
artigo dele de 2011, no "Le Monde", http://migre.me/eSa0S).
Em 2012, De Lagasnerie publicou um livro crucial sobre Michel Foucault, que
acaba de ser traduzido, "A Última Lição de Michel Foucault" (Três Estrelas).
O livro mostra o irrefutável: em seu último seminário ("O Nascimento da
Biopolítica", Martins Fontes), Foucault (um ícone da esquerda) leu, apresentou e
(pasme) levou a sério os pensadores neoliberais (Hayek, em particular). E não
foi uma loucura de última hora. Ao contrário, o interesse de Foucault pelos
neoliberais não deveria nos escandalizar.
Aliás, qual seria o escândalo? Aparentemente, a ideia de que, para o bem ou
para o mal, o neoliberalismo é também uma grandiosa defesa da diversidade e da
liberdade do indivíduo -fato que não podia deixar indiferente o maior pensador
anarquista do século 20, Michel Foucault.
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