As
abrasquianas Ana Luiza d'Ávila Viana e Cristiani Vieira Machado assinam Artigo
onde refletem o processo da intensa participação privada na assistência à saúde.
Segundo o Artigo, tal expansão privada contou
com forte financiamento e subsídio estatal, o que em parte explica um gasto
privado maior que o público na área da saúde no Brasil e um mercado de saúde de
natureza privada operando fora e dentro do SUS.
Confira a íntegra do
Artigo:
No capitalismo qual é
o papel do Estado Social? Reafirmar o compromisso de extensão dos direitos
sociais e evitar a privatização, entendida como promoção dos padrões
individualizantes do mercado de consumo.
Para isso são
necessárias inúmeras políticas públicas de fomento à construção de instituições
produtoras e reguladoras de serviços sociais, de regras fiscais equânimes, de
promoção e incentivo à ocupação e à capacitação da força de trabalho, de
melhorias e instalação de intensa fluidez urbana, de garantia habitacional,
entre outras.
O Estado Social atua
de forma diminuir os impactos do mercado na criação voraz de desigualdades, o
que somente a política e a criação de estruturas voltadas para o interesse
coletivo podem fazer, promovendo o princípio da comunalidade endossada, do
seguro coletivo contra o infortúnio individual e suas consequências, como diria
Zygmunt Bauman.
Mais do que isso, o
Estado Social olha o futuro no sentido de criar uma sociedade de semelhantes,
promovendo políticas e regras voltadas para igualdade e a diminuição das
diferenças de partida (desde o nascimento), assegurando maiores chances para
aqueles não portadores de ativos (na forma de renda, propriedades, capital
social).
São numerosas as
explicações para o surgimento do Estado Social no século XX, porém o certo é que
a política foi crucial para conter o avanço do mercado autorregulado e a
ausência de mecanismos de proteção social em todos os
países.
No Brasil foi
construído um Estado Social voltado para o mercado de trabalho, de forma a
cobrir infortúnios gerados pelo assalariamento, no processo de industrialização
tardia, assentado no êxodo rural e na imigração. A intensa urbanização dos anos
iniciais do processo de industrialização, sem políticas públicas mais
abrangentes, colocou uma imensa massa de assalariados recebendo benefícios
diferenciados conforme a sua inserção laboral, convivendo (ainda) com formas
pré-modernas de proteção social, como aquela ofertada pelas ordens religiosas e
associações comunitárias de todo tipo. Dessa forma, a marca histórica do Estado
Social brasileiro é a segmentação (urbano/rural; trabalho formal/informal), a
diferenciação dos benefícios e o paternalismo político e religioso dos sertões
do nosso país.
Tardiamente, na crise
e no processo de democratização dos anos 80 do século XX, é que uma política
para a Seguridade Social foi pensada e endossada pela sociedade em meio a uma
discussão sobre novos padrões de desenvolvimento, justiça social e liberdade,
palavras sempre ouvidas nos grandes comícios das “Diretas Já” (realizados em São
Paulo, Rio de Janeiro Belo Horizonte e em outras cidades brasileiras). Porém a
trajetória política do país se distanciou dessas insígnias, quando uma nova
ordem conservadora quis reverter todas as conquistas do período de capitalismo
regulado e de alargamento dos direitos sociais no mundo, com forte repercussão
nos países emergentes.
Como construir um
novo Estado Social sobre as bases da solidariedade, da justiça social e da
responsabilização coletiva pelos riscos individuais, em um momento de
questionamento profundo do papel do Estado e de políticas públicas voltadas para
reversão do quadro de desigualdades inerentes ao processo de acumulação
capitalista?
No último decênio do
século passado, a tônica dos discursos conservadores (mais do que liberais) foi
o forte questionamento do Estado-protetor, burocrático e paternalista, assentado
numa cultura de dependência assistencial e em uma estrutura tradicional de
família. Criticou-se o excesso de taxação e de igualitarismo promovido pelo
Estado, com efeitos negativos sobre o plano da eficiência, o estímulo
empreendedor, o estímulo ao trabalho e a liberdade de
escolha.
Esse questionamento
repercutiu fortemente em todos os países e provocou reformas institucionais que,
de maneira geral, iniciaram ou acentuaram processos de privatização, que buscam
transferir, para os ombros dos indivíduos, parcelas crescentes da cobertura dos
riscos sociais e o estímulo à participação privada (com e sem fins de lucro) na
oferta e gerenciamento dos serviços sociais.
Porém, foi nos países
fora do centro econômico mundial que a onda conservadora mais se impregnou e
teve efeitos deletérios. Isso se deu pela incipiente base do Estado Social, pela
crise econômica que assolou vários desses países no final do século, pela
estreita base tributária, pela frágil cultura de solidariedade e ethos público,
pela escassez de partidos de cunho socialista e social democrata, por um perfil
econômico agrário baseado na grande propriedade, pela pouca proteção ao
trabalho, entre outros fatores.
Mesmo assim, foi
possível construir ou adensar políticas de proteção em algumas nações, com
destaque para os países emergentes da Ásia, e implantar políticas
redistributivas na América Latina, o que gerou o fortalecimento da assistência
social no tripé da Seguridade Social (Previdência, Saúde e
Assistência).
Essa forte vocação
para a área assistencial se explica também pelo tipo de desenvolvimento
econômico (pós 2004) das economias sul americanas, com forte participação do
consumo privado no PIB, expansão do setor de serviços, fraco desempenho da
indústria local e crescimento das exportações de commodities de diferentes tipos
(minério, petróleo, carne, produtos agrícolas).
Tal padrão de
desenvolvimento necessita incorporar massas crescentes ao mercado de consumo, o
que impõe melhoria e redistribuição de renda (via trabalho ou transferências),
desoneração fiscal, aumento progressivo de salário, investimentos em serviços
sociais de atendimento pontual e voltados para problemas e populações
específicas.
Nessa perspectiva,
outros tipos de políticas sociais, como a de saúde, por exemplo, se justificam
mais pelo incentivo econômico à produção de insumos, equipamento, enfim, ao
complexo da cadeia produtiva da saúde, do que pela instituição de um sistema com
ações e serviços igualitários e atendimento equânime, eficiente e de qualidade a
todos os cidadãos.
No Brasil, a criação
e a expansão do SUS nesses últimos 25 anos se deu justamente em meio a
concepções distintas sobre o Estado Social. De um lado, assentou-se em uma
proposta abrangente de Seguridade, inscrita na Constituição de 1988, baseada em
um desenho integrado e universalista de políticas sociais, e sustentado por
intensa mobilização de atores políticos setoriais. De outro, iniciou-se nos anos
1990 em um contexto de predomínio de uma visão negativa do Estado; para se
defrontar, a partir dos anos 2000, com uma retomada da valorização do Estado,
mas sob um modelo de articulação entre o econômico e o social que confere pouco
espaço às políticas sociais universais.
Mesmo em um cenário
adverso, o SUS propiciou algumas mudanças importantes. Em primeiro lugar, houve
a criação de uma estrutura de serviços descentralizada, calcada no desenho
federalista, favorecendo a criação de uma base de apoio nos políticos e outros
atores locais e regionais. O processo de descentralização ocorreu com
progressiva redução da participação federal no financiamento, e maior assunção
subnacional dos gastos, dos arranjos assistenciais, da gestão do mix
público-privado e do padrão e extensão de cobertura.
Em segundo lugar,
ocorreu uma expressiva expansão dos serviços de atenção básica em saúde no
território nacional, propiciada por amplo consenso internacional e nacional em
torno do tema, com repercussões positivas para o acesso e melhoria de alguns
indicadores de saúde da população. No entanto, pouco investimento de forte
conteúdo tecnológico foi feito no período, e os serviços privados na área
diagnóstica, terapêutica e hospitalar de alta complexidade se expandiram,
principalmente nos maiores centros urbanos.
Assim, outro processo
se alastrou: o da intensa participação privada na assistência à saúde, de
diferentes formas: na oferta de serviços; na oferta de tecnologias de ponta para
todo tipo de procedimentos médicos; na intermediação financeira no mercado de
saúde; no estímulo à conformação de grandes grupos capitalistas na área,
envolvendo serviços, finanças e indústria, de caráter multinacional. Tal
expansão privada contou com forte financiamento e subsídio estatal, o que em
parte explica um gasto privado maior que o público na área da saúde no Brasil e
um mercado de saúde de natureza privada operando fora e dentro do
SUS.
Na ótica econômica, o
crescimento do segmento privado via empresas que comercializam planos e seguros
de saúde tem uma fácil explicação, pois há um gatilho acionado para a expansão
toda vez que cresce o emprego formal e há expansão econômica, como ocorreu nos
anos mais recentes. O mesmo gatilho funciona de forma muito mais leve no SUS,
dado o atrelamento da elevação do financiamento via Tesouro segundo a variação
nominal do PIB. Os gatilhos são diferentes em intensidade e impacto e podem
explicar os movimentos de expansão ou de retração no SUS e no segmento
privado.
Na ótica da política,
o crescimento desse segmento também pode ser explicado pelo caráter e sentido da
ação estatal, em face dos numerosos incentivos e do modelo regulatório adotado
no período do SUS. Além de implantada tardiamente (a partir de 1998/1999), a
regulação estatal operada por meio da Agência Nacional de Saúde Suplementar tem
servido mais à organização dos mercados e à (limitada) regulamentação de
relações contratuais entre empresas e clientes, o que constitui atividade típica
de qualquer Estado capitalista, sem que signifique a existência de um Estado
Social.
A privatização ocorre
com o avanço da participação privada na oferta e gerenciamento de serviços de
saúde (hospitais, ambulatórios, laboratórios) componentes da base do SUS (via
contratos, convênios com instituições filantrópicas, lucrativas, Organizações
Sociais, entre outras), e pelo peso do setor privado operado via empresas de
planos e seguros (com quase 50 milhões de usuários e faturamento da ordem de R$
80 bilhões), ambos contando com financiamento público (na forma de impostos,
isenções e desonerações fiscais e subsídios diversos, inclusive ao
crédito).
Na verdade ocorre um
processo combinado de desmercantilização do acesso (via SUS pela gratuidade ou
via planos pela isenção fiscal ilimitada), acelerada mercantilização da oferta
(via expansão dos serviços privados, principalmente na área de maior densidade
tecnológica) e, finalmente, estímulo crescente à capitalização e formação de
grandes conglomerados oligopolistas que englobam serviços, finanças e
indústria. Esse é, aliás, o padrão observado em outras áreas – alimentos,
energia, armamentos – como forma de controlar os riscos inerentes ao processo de
crescimento exponencial dos ativos financeiros (que atingiram, em 2007, a soma
de quase US$ 200 trilhões, frente a uma riqueza real de quase US$ 60 trilhões,
segundo estimativas do Mcklinsey Global Institute).
Dessa forma, o
sistema público e o segmento privado concorrem pelo financiamento público,
dependem da compra de serviços privados para dar cobertura aos seus segurados,
são reféns da indústria internacionalizada do complexo produtivo e, portanto,
possuem pouca margem de manobra para controlar custos e regular os
provedores.
Essa coexistência têm
efeitos deletérios do ponto de vista da eficiência geral do sistema de saúde
(tendência à incorporação tecnológica e custos crescentes, sob-restrito
controle; busca de lucros pelas empresas); e da equidade, visto que perpetua as
desigualdades no acesso, utilização e qualidade dos serviços entre as pessoas,
segundo sua capacidade de pagamento e de usufruto da atenção disponível nos
distintos segmentos. Tende ainda a colocar os serviços públicos em situação de
complementariedade aos privados, nos casos de “clientes” que não interessam aos
mercados (idosos e doentes crônicos, que requerem tratamentos de alto
custo).
O padrão de
desenvolvimento fortemente assentado no consumo e nas exportações, que é a marca
desse novo período, favorece e necessita de políticas voltadas para inserção de
grandes massas no mercado de consumo e o estímulo à conformação de conglomerados
para fazer face à concorrência internacional dessa fase da
globalização.
As medidas recentes
de fortalecimento do consumo das famílias, o intenso processo de desoneração
fiscal de alguns produtos de consumo de massa, o estímulo ao crédito via redução
dos juros, podem explicar o crescimento do consumo das famílias em quase cinco
pontos percentuais entre 2004-2008 e 2011-2012, conforme artigo de Bráulio
Borges (Folha de São Paulo, de 17/03/2013).
Nesse novo padrão de
desenvolvimento, a política social foi direcionada não para fincar as bases do
Estado Social com a finalidade da criação de uma sociedade de iguais protegida
das forças do mercado, mas para operar politicas focalizadas de combate à
desigualdade, da forma mais rápida e impactante no consumo das
famílias.
Isso é o que chamamos
de doença holandesa (sobrevalorizar uma atividade de forma a aniquilar outras)
da política social, isto é, a acentuada ênfase estatal nas ações e estratégias
de forte impacto no aumento do consumo das famílias, de maneira a subtrair
recursos, vontade e apoio para a criação das bases de uma Seguridade Social
universalista e solidária.
Nesse modelo, o
Estado Social carece de recursos, desmorona ou é ativamente desmantelado porque
as fontes de lucro capitalista foram levadas da exploração da mão de obra fabril
para a exploração dos consumidores. Os pobres precisam de dinheiro e de linhas
de crédito para consumir e ter alguma utilidade na economia; e esses não são os
tipos de serviços fornecidos pelo Estado Social, como afirma acertadamente
Zigmund Bauman em obra recente, intitulada “Danos
Colaterais”.
Não se trata aqui de
ignorar a relevância do aumento do poder de consumo das famílias como expressão
da redução das desigualdades de renda e da possibilidade de acesso de grupos
sociais menos favorecidos a bens até então disponíveis para poucos. Trata-se, no
entanto, de reconhecer que essa estratégia isoladamente não é suficiente. Na
área social, a individualização dos riscos e da responsabilidade sobre a
proteção – consequências do esvaziamento do Estado Social e da rarefação das
políticas universais-, em médio e longo prazo, reitera padrões de estratificação
e erode as possibilidades de construção de sociedades mais
solidárias.
O debate sobre o
novo-desenvolvimentismo está em construção, no plano teórico-acadêmico e
político-governamental. A forma como a política social se articula às políticas
econômicas representa uma questão crucial para a natureza de novos Estados
desenvolvimentistas. O novo-desenvolvimentismo não pode se resumir apenas a uma
visão “neoestruturalista” – no sentido do fortalecimento de segmentos da
indústria, de grupos capitalistas nacionais, de promoção do dinamismo econômico
–, atrelados a políticas de combate à pobreza e criação de novos mercados de
consumo. Essa é uma opção limitada, que tende a reproduzir problemas antigos,
não dá conta das transformações no capitalismo e perpetua a fragmentação e as
desigualdades na sociedade.
Como adverte Peter
Evans em sua produção recente, os novos Estados desenvolvimentistas deveriam
conferir centralidade às políticas sociais de caráter universal – como educação
e saúde – dada a sua importância não somente na perspectiva dos direitos
sociais, mas também na geração de empregos qualificados e na construção de novas
capacidades, cruciais na fase atual do capitalismo mundial, baseado nos setores
de serviços e no peso das inovações tecnológicas. A construção desse modelo
passa pela condução estatal das políticas, pelo limite às forças de mercado e
por uma nova forma de “autonomia inserida” do Estado, que não se resume às
relações com os grupos capitalistas, mas sim à permeabilidade a diversos grupos
sociais, em um contexto democrático.
Em que pesem as
dificuldades relacionadas ao cenário do capitalismo global, na América Latina o
Brasil teria uma posição privilegiada para conformar um novo modelo
desenvolvimentista, que integrasse políticas econômicas e sociais em outra
lógica, conferindo um lugar de destaque para as políticas universais. O país já
é uma das maiores economias do mundo; uma democracia recente, porém estável;
dispõe de instituições políticas relativamente sólidas; de uma população
numerosa, com uma proporção ainda expressiva de jovens; de uma Constituição
nacional que assegura direitos sociais amplos; de um desenho de sistema de saúde
público e universal, singular entre as nações capitalistas da
Região.
Quem dera
aproveitássemos o momento para superar as nossas contradições históricas e
promover mudanças estruturais no modelo de desenvolvimento e no caráter da
política social brasileira, conformando um novo Estado Social, com vistas à
construção de uma sociedade mais justa e igualitária. Nesse projeto, o sentido
do SUS, como expressão de uma política de saúde efetivamente universal, estaria
claro para todos.
* Professora do Departamento de Medicina Preventiva/Faculdade de Medicina/ Universidade de São Paulo. Bolsista de Produtividade do CNPq e membro da Plataforma Política Social. E-mail: analuizaviana@usp.br.
** Pesquisadora do Departamento de Administração e Planejamento em Saúde/Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca/Fundação Oswaldo Cruz. Bolsista de Produtividade do CNPq e membro da Plataforma Política Social. E-mail: cristiani@ensp.fiocruz.br.
(Originalmente
publicado no Blog do CEBES - 31 de maio de 2013)
Via:http://www.mariolobato.blogspot.com.br/
Via:http://www.mariolobato.blogspot.com.br/
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