Lúcia Murat: Eu chorava igual uma louca dentro do carro e pedia por favor para eles me matarem
Depoimento
de Lúcia Murat à Comissão da Verdade do Rio
A cineasta Lúcia Murat prestou
depoimento emocionado nesta terça-feira, 28, à Comissão Estadual da Verdade do
Rio de Janeiro. Falou das torturas a que foi submetida durante a ditadura
militar. O relato levou a cineasta por diversas vezes às lágrimas. O plenário
lotado da Assembleia Legislativa do Rio também se emocionou.
A reportagem conseguiu o depoimento de
Lúcia Murat:
“A minha primeira prisão foi no
Congresso estudantil em Ibiúna em outubro de 1968. Eu era vice-presidente do
diretório estudantil da faculdade de economia e estava no congresso
representando a minha faculdade. Fiquei cerca de uma semana na prisão e não fui
torturada. Antes do Ato Institucional número 5, em 13 de dezembro de 1968, os
estudantes de classe média não eram torturados, mas o mesmo não acontecia com os
operários. Dois anos mais tarde encontrei e militei com Jose Barreto,
assassinado junto com Carlos Lamarca, e ele me contou das torturas que sofreu em
1968, quando foi preso por ter estado no comando da Greve de
Osasco.
Por ter sido presa no Congresso de
Ibiúna, eu entrei na clandestinidade lodo depois do Ato Institucional numero 5,
pois sabíamos que com o fim do habeas corpus e dos direitos que ainda existiam
os militares iriam me perseguir em algum momento.
E, efetivamente, alguns meses mais
tarde quando da chamada Operação Rockefeller, mais de 10 mil pessoas foram
presas numa tentativa de preservar o país de qualquer manifestação contra a
chegada de Nelson Rockefeller , então governador de Nova York. Nessa ocasião, a
casa dos meus pais foi invadida por militares armados. E, meu pai, Dr Miguel
Vasconcellos, então diretor do Hospital Pedro Ernesto no Rio de Janeiro, foi
preso e levado para um quartel onde o interrogaram sobre a minha localização, a
qual ele desconhecia. Com ele, foi levada minha irmã Regina Murat Vasconcellos.
Eles foram soltos, depois de ameaçados.
A minha segunda prisão se dá então em
31 de março de 1971, depois de dois anos e meio de clandestinidade.
A tortura era uma prática da ditadura e
nós sabíamos disso pelo relato dos que tinham sido presos antes. Mas nenhuma
descrição seria comparável ao que eu vim a enfrentar. Não porque tenha sido mais
torturada do que os outros. Mas porque o horror é indescritível.
Sabendo dessa impossibilidade, vou
tentar descrevê-lo.
Em março de 1971, eu estava junto com
Maria Luiza Garcia Rosa num quarto que alugávamos num apartamento no
Jacarezinho. Eles chegaram de noite e nem houve condições de esboçar uma reação.
Imediatamente fomos separadas, me jogaram num carro e me enfiaram um capuz.
Começaram a me bater dentro do carro.
Quando cheguei no Doi-Codi, não sabia
onde estava, só fui descobrir mais tarde, que era o quartel do Exercito
localizado na Rua Barão de Mesquita, que existe até hoje. Rapidamente me
levaram para a sala de tortura. Fiquei nua, mas não lembro como a roupa foi
tirada. A brutalidade do que se passa a partir daí confunde um pouco a minha
memória. Lembro como se fossem flashs, sem continuidade. De um momento para
outro, estava nua apanhando no chão. Logo em seguida me levantaram no pau de
arara e começaram com os choques. Amarraram a ponta de um dos fios no dedo do
meu pé enquanto a outra ficava passeando . Nos seios, na vagina , na boca.
Quando começaram a jogar água, estava desesperada e achei num primeiro momento
que era para aliviar a dor. Logo em seguida os choques recomeçavam muito mais
fortes . Percebi que a água era para aumentar a força dos choques.
Isso durou horas. Não sei quantas. Mas
deve ter se passado mais de dez horas.
De tempos em tempos, me baixavam do pau
de arara. Lembro que um médico entrou e me examinou. Aparentemente fui
considerada capaz de resistir, pois a tortura continuou.
Logo que comecei a apanhar, achei que
não ia resistir e inventei uma história que na minha cabeça me possibilitaria me
suicidar.
Nós tínhamos um sistema de ponto – de encontros – em que se não aparecêssemos em 48 horas, nós seriamos considerados presos e nossa família seria avisada. Eu queria proteger meus companheiros e a única coisa que me passava pela cabeça era agüentar um tempo até eu ter condições de me suicidar, pois assim todos estariam salvos. Então, disse que eu deveria estar na varanda do apartamento onde tinham me prendido, e que um companheiro passaria de carro embaixo do edifício. Eu faria um sinal de que tudo estava bem, e ele iria me encontrar mais tarde em um determinado lugar. Eu achava que da varanda do apartamento eu poderia me jogar e tudo estaria terminado.
Nós tínhamos um sistema de ponto – de encontros – em que se não aparecêssemos em 48 horas, nós seriamos considerados presos e nossa família seria avisada. Eu queria proteger meus companheiros e a única coisa que me passava pela cabeça era agüentar um tempo até eu ter condições de me suicidar, pois assim todos estariam salvos. Então, disse que eu deveria estar na varanda do apartamento onde tinham me prendido, e que um companheiro passaria de carro embaixo do edifício. Eu faria um sinal de que tudo estava bem, e ele iria me encontrar mais tarde em um determinado lugar. Eu achava que da varanda do apartamento eu poderia me jogar e tudo estaria terminado.
Mas quando eu saí do pau-de-arara , eu
estava paralítica, a minha perna direita tinha inchado muito (depois foi
diagnosticada uma flebite). Eu não conseguia mexer a perna, estava muito
machucada, com febre muito alta e com os pulsos abertos por causa do pau de
arara. Sem poder subir as escadas do edifício, eles me levaram até o local, mas
me deixaram dentro do carro e me substituíram na varanda por uma pessoa deles
com uma peruca da cor dos meus cabelos. Quando eu percebi o que estava
acontecendo, comecei a ficar desesperada. Sabia que eles não iam pegar ninguém e
que quando voltasse eu não iria resistir. Eu não ia conseguir me suicidar. Essa
foi talvez a pior sensação da minha vida, a sensação de não poder morrer. Eu
chorava igual uma louca dentro do carro e pedia por favor para eles me
matarem.
Eles riam. E diziam que eu ia me fuder
se não caísse ninguém.
Eu não tinha muita noção das horas, mas
sabia que, naquele momento, tinha que aguentar pelo menos mais 12 horas para
impedir a prisão dos meus companheiros,. E não sabia como. Aos 22 anos, eu vi
que tinha que inventar outra história que justificasse para mim mesmo o novo
horror que se aproximava. Desde o carro, antes de ir para um encontro onde
ninguém foi preso, eu comecei a dizer que a culpa era deles, que ninguém era
idiota de ir num ponto porque não era eu que estava na varanda. Eu precisava me
agarrar a uma história, mesmo que eles não acreditassem.
Não sei bem o que se passou quando eu
voltei. As lembranças são confusas. Não sei como era possível, mas tudo ficou
pior. Eles estavam histéricos. Sabiam que precisavam extrair alguma coisa em 48
horas senão perderiam meu contato. Gritavam, me xingavam e me puseram de novo no
pau de arara. Mais espancamento, mais choque, mais água. E dessa vez entraram as
baratas. Puseram baratas passeando pelo meu corpo. Colocaram uma barata na minha
vagina.
Hoje, parece loucura. Mas um dos
torturadores de nome de guerra Gugu, tinha uma caixa onde ele guardava as
baratas amarradas por barbantes. E através do barbante ele conseguia manipular
as baratas no meu corpo.
Eu queria morrer e não conseguia
morrer. Mas nisso praticamente eu já tinha ganho o tempo necessário para liberar
os pontos com a organização. E a Marilena Vilas Boas, que mais tarde foi
barbaramente assassinada, que era com quem eu tinha os encontros, conseguiu
avisar minha família de que eu tinha sido presa.
Passados esses primeiros dias, eu fui
largada no corredor, de capuz. Eu ficava meio desmaiada, meio
dormindo.
Até que fui levada para a enfermaria.
Na enfermaria, depois de algum tempo, comecei a tomar antibióticos. Não podia
andar, minha perna direita estava muito inchada e não mexia, meus pulsos estavam
feridos, assim como os seios e os pés. Não podia comer porque tinha levado muito
choque na língua e se engolia alguma coisa, vomitava.
Médicos mais tarde calcularam que se eu
não tivesse começado a ser medicada, eu teria morrido em poucos dias. Isso é
uma questão importante. As circunstâncias. Com certeza eu fui salva por
circunstâncias, não pela vontade deles. Podíamos morrer a qualquer momento e por
isso nos mantinham incomunicáveis em todo esse período e negavam nossa prisão.
Para eles, que eram donos de nossas vidas e de nossas mortes, seria apenas mais
um “acidente”, como tantos que aconteceram.
Na enfermaria, os médicos que me
trataram eram os mesmos que nos “assistiam ” na sala de tortura: Amilcar Lobo e
Ricardo Fayal.
No dia seguinte, comecei a ser interrogada por dois representantes da Bahia - eu tinha vivido clandestina durante um ano em Salvador - o Major Cinelli, do CIEX e um representante da Aeronáutica. Eles resolveram me levar para a Bahia. Disseram que iam me tratar lá.
No dia seguinte, comecei a ser interrogada por dois representantes da Bahia - eu tinha vivido clandestina durante um ano em Salvador - o Major Cinelli, do CIEX e um representante da Aeronáutica. Eles resolveram me levar para a Bahia. Disseram que iam me tratar lá.
Fui de avião da FAB para Salvador e
levada para o quartel de Barbalho, onde o medico se apavorou achando que eu ia
morrer em suas mãos e fez um relatório descrevendo em detalhes minha situação e
pedindo um especialista. Lembro que esse médico disse: “Eu vou fazer isso porque
senão você vai morrer nas minhas mãos e eu não tenho nada a ver com isso”.
Trouxeram então um médico neurologista da Aeronáutica que me tratou. Minha perna
começou a desinchar. Continuava de cama e sendo interrogada todos os dias pelo
major Cinelli. Mas nesse momento sem tortura física.
Melhorei, a perna desinchou e fui
transferida para Base Aérea em Salvador. Eu estava com a perna muito fina, sem
controle no pé, a cintura torta, como se eu tivesse tido paralisia infantil.
Achei que as torturas tinham terminado, quando me avisaram que eu voltaria para
o Rio. Quando eles entraram na cela já me puseram o capuz. Fui levada aos
trancos para o avião, e durante todo o trajeto era ameaçada de ser jogada para
fora. Me levantavam da cadeira, me levavam até um lugar onde deveria ser a porta
de emergência do avião e diziam que iam abrir. Voltavam a me sentar para
recomeçar tudo. Em algum momento, me perguntaram pelo “Paulo” , nome de guerra
do Stuart Angel Jones, e eu percebi que ele tinha caído. Depois, no Rio nunca
mais perguntaram por ele. Stuart tinha sido assassinado. Só soube
depois.
Eles se comportavam o tempo todo como
se estivessem disputando um campeonato. E o que estava em jogo podia ser uma
prisão, a morte de alguém da oposição considerado importante, o fato de alguém
ter falado. Assim, o pessoal do Dói-Codi disputava com a Aeronáutica, que
disputava com a polícia… O pessoal do Rio disputava com a Bahia, etc…. Eles nos
disputavam como se fossemos troféus, verdadeiros animais de caça.
Quando voltei ao DOi-Codi, de
Salvador, a tortura seria um pouco diferente. Em 1971, eles já conheciam bem o
funcionamento das organizações clandestinas E a tortura era dirigida para o seu
aniquilamento. Assim, eles sabiam do esquema de pontos que tínhamos e a tortura
quando éramos presos, era violenta e brutal para que entregássemos os encontros
com nossos companheiros o mais rápido possível. Depois, eles sabiam que podiam
usar o tempo a favor deles para conseguir informações mais estruturais. Um dos
torturadores, de nome de guerra Nagib, me disse um dia que para eles nós éramos
como cachorrinhos de Pavlov. O choque no início tinha de ser de alta voltagem.
Mas depois, eles podiam dar choques pequenos que a nossa memória era do choque
de alta voltagem. Nos já estaríamos nas mãos deles.
Acho isso muito importante porque
demonstra também que essa equipe de torturadores estudava os métodos que eles
eufemisticamente chamavam de “técnica de interrogatório”. Não era simplesmente
uma explosão de um sádico de plantão.
Num segundo momento então, a tortura era progressiva, feita de idas e vindas, de ameaças e da nossa certeza, permanentemente alimentada por eles, que tudo poderia recomeçar a qualquer momento. O objetivo era, pouco a pouco, nos anular, como pessoas e como militantes.
Num segundo momento então, a tortura era progressiva, feita de idas e vindas, de ameaças e da nossa certeza, permanentemente alimentada por eles, que tudo poderia recomeçar a qualquer momento. O objetivo era, pouco a pouco, nos anular, como pessoas e como militantes.
Foi nesse quadro, na volta, que o
próprio Nagib, fez o que ele chamava de tortura sexual cientifica. Eu ficava
nua, com um capuz na cabeça, uma corda enrolada do pescoço passando pelas costas
até as mãos, que estavam amarradas atrás da cintura. Enquanto o torturador
ficava mexendo nos meios seios, na minha vagina, penetrando com o dedo na
vagina, eu ficava impossibilitada de me defender, pois se eu movimentasse meus
braços para me proteger eu me enforcava e instintivamente voltava atrás. Ou
seja, eles inventaram um método tão perverso em que aparentemente nós não
reagíamos, como se fôssemos cumplices de nossa dor. Isso durava horas ou
noites, não sei bem.
Era considerado um método de
aniquilamento progressivo. E foi realmente o período em que eu mais me senti
desestruturada, mais do que em toda a loucura dos primeiros dias Porque você já
sabe o que é a tortura, e ela parece que nunca terá fim.
Nessa época, a rotina estava implantada. Eu ficava numa cela – num período fiquei com uma menina do Paraná chamada Ruth - e era levada repetidamente para a sala de tortura, para novos interrogatórios. Acho que a essas alturas eu já estava ha dois meses na prisão, quando meu advogado, Dr Tecio Lins e Silva, conseguiu que eu fosse apresentada na Auditoria da Marinha, onde corria um processo contra mim.
Nessa época, a rotina estava implantada. Eu ficava numa cela – num período fiquei com uma menina do Paraná chamada Ruth - e era levada repetidamente para a sala de tortura, para novos interrogatórios. Acho que a essas alturas eu já estava ha dois meses na prisão, quando meu advogado, Dr Tecio Lins e Silva, conseguiu que eu fosse apresentada na Auditoria da Marinha, onde corria um processo contra mim.
Desde o primeiro dia, quando Marilena
avisou minha mãe, minha família e meu advogado, tentavam desesperadamente me
encontrar. Eles sabiam que se eu fosse levada na auditoria, eu estaria salva
pois teria sido apresentada e seria muito difícil eles me matarem. Por isso,
usaram de todos os subterfúgios e procedimentos legais para conseguirem que eu
fosse apresentada. O meu advogado entrou com um pedido na Auditoria afirmando
que eu tinha sido presa. A auditoria mandou uma ordem para o Quartel da
PE.
Essas contradições existiam porque em
meio ao horror a ditadura brasileira sempre tentou manter justificativas legais.
E nós não estávamos sendo torturadas numa casa clandestina, mas num quartel do
exército.
E assim um dia mandaram eu me vestir –
nós usávamos um macacão na prisão – e eu fui levada por um grupo de soldados da
PE para a Auditoria da Marinha.
Quando eu cheguei na auditoria eu não
andava, a minha perna continuava atrofiada e eu tinha hematomas e ferimentos
pelo corpo. Me levaram para uma sala onde estavam meus pais e meu advogado.
Sempre rodeada pelos soldados da PE, eu pedi por favor para que eles tentassem
me tirar do Doi-Codi e me levassem para o Hospital Militar. Eu sabia também que
aquele momento era a única chance que eu teria de denunciar as torturas com uma
prova real. Eu era a prova real da tortura. E apesar do medo imenso que sentia
eu denunciei que estava naquele estado por causa das torturas, num depoimento
extremamente emocionado. Lembro- e eu tinha apenas 22 anos - que quando entrei
na sala todos os juízes militares baixaram a cabeça. Não tiveram a coragem de me
encarar. Como também não tiveram a coragem – apesar de todos os esforços do meu
advogado – de me mandarem para o Hospital Militar e, mais uma vez, eu fui
levada para o Doi-Codi. Eu tremia muito pois imaginava o que me esperava depois
de ter denunciado tortura. Eu disse para o meu advogado: Eles vão me matar’. A
impotência estampada nos olhos dele era o retrato desse país.
Mas eles não podiam mais me matar
porque eu já estava oficialmente presa, o que no entanto não tinha a menor
importância para mim. O importante era que eu sabia que ia voltar a ser
torturada e que eles deveriam estar furiosos com o meu depoimento. E é
impressionante a capacidade deles de inventarem sempre alguma coisa diferente.
Alguma coisa que vai te deixar pior ainda.
Quando cheguei na sala de tortura,
estavam todos juntos e enlouquecidos. (Releio esse depoimento e vejo que a todo
momento eu digo que foi a pior coisa que vivi na vida.) Bom, esse momento foi de
novo o pior momento que já vivi na vida. Eles me fizeram representar o que eu
tinha feito na auditoria, como se tivesse sido uma representação, uma mentira,
uma palhaçada.
“Ah, agora faz mais cara de choro, não
está suficiente, você fez mais cara de choro do que essa lá’, ‘- Manca mais,
você mancou mais lá filha da puta’. E eu fiz tudo o que eles mandaram, eu fiz
tudo que eles mandaram. A sensação era que eu tinha perdido inteiramente minha
identidade. Quando a sua dor é transformada em piada com a sua ajuda é como se
nada mais tivesse sentido.
Depois disso, eu fiquei mais algum
tempo no Doi-Codi, não sei precisar quanto. Sei que fui presa em 31 de março e
que quase três meses depois fui finalmente mandada para a Vila Militar, onde
passei a ser legalmente presa, com visita de família e advogado. De todo esse
período, de todo esse horror, eu vivi também alguns momentos de esperança. No
quartel da Barão de Mesquita, além das equipes de torturadores, encontrávamos
soldados da Polícia do Exército em serviço militar. Era um quartel, com um
funcionamento normal de quartel. E a maior parte dos soldados para mostrar
serviço diante dos oficiais participavam da brutalidade. Ou nos empurrando, ou,
por exemplo, dizendo que tinha um degrau a mais quando subíamos uma escada de
capuz fazendo com que caíssemos. Pequenos poderes, muitos abusos. Mas nem todos
se comportaram assim. Dois soldados são inesquecíveis por terem conseguido
manter sua humanidade. E eu queria lembrá-los hoje.
Eu queria lembrá-los aqui, mesmo sem
saber seus nomes, porque o que estamos fazendo é um exercício de humanidade. Um
soldado se ofereceu para levar um bilhete para minha família. E levou. O outro
foi o enfermeiro que na minha primeira noite na enfermaria passou todo o tempo
acordado colocando panos quentes para tentar amenizar a dor da minha perna,
Lembro que ele só repetia. “Quando eu terminar o serviço militar, quero esquecer
tudo isso.”
Mas nós não podemos esquecer. E por
isso estamos aqui hoje.
Estava já há cerca de dois meses na
Vila Militar, quando em final de agosto, fui levada de novo para o Doi-Codi.
Essa possibilidade não passava pela minha cabeça. Tinha me convencido que tudo
aquilo acabara. Mas com o assassinato da Yara Yalvberg e a perseguição ao
Lamarca e ao Zequinha, resolveram que eu deveria ser interrogada de novo sobre a
Bahia. Quando um sargento me disse, na Vila Militar, que eu iria ser levada para
o Doi-Codi entrei em desespero, e de novo tentei suicídio. Era inadmissível
voltar a viver tudo aquilo. Mas fui impedida pela minha companheira de cela,
minha querida Abigail Paranhos, que perdemos para o câncer alguns anos atrás.
Estava tão desesperada que me deram uma injeção e fui levada quase desmaiada
para a Barão de Mesquita.
Lá tudo estava mudado. As celas tinham
cama e lençol e os aparelhos de tortura foram substituídos por celas com
controle de som e de temperatura, as chamadas geladeiras. Os presos eram
colocados sem poder dormir, sem comer e em temperaturas baixíssimas. Fui de novo
interrogada pelo Major Cinelli. Eu não estava entendendo nada do que
acontecia.
Hoje, me parece que o Doi-Codi da Barão
de Mesquita, a partir desse momento, foi reservado para presos que passariam por
esse “interrogatório cientifico”. Ao mesmo tempo, os militantes das organizações
armadas considerados chave foram sumariamente condenados a morte.
Não iam mais para o Doi-Codi. Iam ser
torturados e assassinados em outros lugares, como a Casa da Morte de Petrópolis,
cuja única sobrevivente foi Ines Etiene Romeu.
Foi assim com Sérgio Furtado, com Paulo
Ribeiro Bastos, com Fernando Santa Cruz e muitos outros companheiros que constam
da lista de “desaparecidos”. A pena de morte foi decretada também para os
combatentes urbanos nesse período, assim como foi para os militantes da
Guerrilha do Araguaia.
Não posso provar que houve uma decisão
de matar os poucos sobreviventes das organizações armadas, mas é o que deduzo do
que vivi nessa época.
O Nagib, que gostava de discursar, de
me explicar as técnicas e os objetivos deles, me disse uma vez que depois de
acabarem conosco, que no fundo éramos apenas garotos impertinentes, eles iam
terminar com quem efetivamente importava, com aqueles que tinham feito nossas
cabeças. E que depois de aniquilar as organizações armadas, iriam aniquilar o
Partido Comunista Brasileiro. Efetivamente, alguns anos depois a direção do PCB
foi assassinada.
É terrível você olhar para trás e
descobrir que no seu país utilizou-se de métodos cruéis e criminosos na luta
política. Não se tratava apenas de aniquilar quem estava se defendendo de armas
na mão, mas de aniquilar toda e qualquer visão contrária à deles. Era um método
de manutenção de um poder autoritário.
Uma vez na enfermaria, quando
questionei o Amilcar Lobo de como um médico e psicanalista se permitia àquele
papel, ele me disse que se não fosse ele seria outro, que ele era apenas um
membro de uma engrenagem. Eu me lembro que respondi: muitos disseram isso em
Nuremberg.
Não estamos em Nuremberg. 43 anos se
passaram desses acontecimentos.
Restaram pequenas cicatrizes no meu
corpo, um problema de sensibilidade na minha perna direta e essa história. Uma
história que compartilho com vocês não por desejo de vingança ou masoquismo, mas
porque acredito que a única maneira de fortalecemos a democracia nesse país e
conhecendo nosso passado. A única maneira de combater aqueles que ainda torturam
por esse país afora, é mostrar que esse é – e sempre foi – um crime de
lesa-humanidade.
Depois de 3 anos e meio de prisão, fui
solta. É verdade que depois de tudo isso, reconstruí minha vida. Com a ajuda de
mina família, de meus amigos e de um processo de análise que durou 25 anos, Mas
reconstruir não significa esquecer. Reconstruir significa saber conviver com
esses fatos lutando para que não se repitam jamais. O horror à violência e ao
autoritarismo passou a fazer parte de mim.
Há dois anos, pedi licença ao Exército
para filmar as celas onde estive presa. O pedido foi negado. Sem explicações.
Como se pode avançar em direção ao futuro se não se pode reconstruir o passado?
Até quando vão esconder nossa história?
Milhares de pessoas foram presas e
torturadas no Rio de Janeiro Queria pedir à Comissão que comece uma campanha
para que todos aqueles que foram presos mandem um depoimento. Precisamos saber o
que aconteceu. Nome, data , que torturas sofreu e quem foram os
responsáveis.
Na minha época do Doi-Codi, os
torturadores usavam nome de guerra e tinham seus nomes verdadeiros tampados por
um esparadrapo na camisa. Mas posteriormente, consegui identificar alguns deles,
que são: Major Demiurgo – então chefe do Doi-Codi e que mantinha contato com
nossas famílias; Tenente Armando Avolio Filho – de nome de guerra Apolo; e
Riscala Corbage, o Nagib.
Os outros não consegui localizar. E
creio que passados 43 anos será quase impossível o reconhecimento. Mas outros
torturados, e foram milhares, com certeza terão outras informações a
dar.
Espero que a Comissão possa ouvir os
que ainda estão vivos e a todos aqueles que foram reconhecidos para que
possamos revelar por inteiro esse período.”
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